Chico Buarque - Essa gente

Literatura contemporânea brasileira
Chico Buarque - Essa gente - Editora Companhia das Letras - 200 Páginas - Capa e projeto gráfico de Raul Loureiro - Lançamento: 09/11/2019.

O lançamento do sexto romance de Chico Buarque ocorre no ano em que o cantor, compositor, poeta e escritor se consagrou ao receber o Prêmio Camões, uma das distinções mais importantes da área de literatura em língua portuguesa. Essa gente vai surpreender o público pela linguagem simples e ritmo veloz, características pouco comuns nas obras anteriores do autor, normalmente de estrutura narrativa mais formal. O livro é constituído por blocos de texto na forma de entradas de diário, alternando cartas e mensagens, diálogos e trechos de conversas telefônicas, no período entre dezembro de 2016 e setembro de 2019. 

Ao focar a ação no tempo presente, o autor corre o risco de assumir uma literatura panfletária em função da atual tendência de polarização política, uma vez que Chico Buarque é um dos alvos prediletos da direita, contudo, no final, ganha o leitor ao se reconhecer nessa gente que vive na caótica cidade do Rio de Janeiro, entre a praia e a favela, em situações nas quais o absurdo da realidade cotidiana supera a ficção mais delirante. O protagonista, Manuel Duarte, é um escritor decadente que atravessa um período de bloqueio criativo, além da crise financeira e emocional depois da segunda separação. No seu impasse existencial, ele tenta convencer o editor a adiantar alguns royalties pelo livro que não está conseguindo escrever.
Rio, 30 de novembro de 2018 / "Meu caro, Não pense que me esqueci das minhas obrigações, muito me aflige estar em dívida com você. Fiquei de lhe entregar os originais até o fim de 2015, e lá se vão três anos. Como deve ser do seu conhecimento, passei ultimamente por diversas atribulações: separação, mudança, seguro-fiança para o novo apartamento, despesas com advogados, prostatite aguda, o diabo. Não bastassem os perrengues pessoais, ficou difícil me dedicar a devaneios literários sem ser afetado pelos acontecimentos recentes no nosso país. Já gastei o advance que você generosamente me concedeu, e ainda me falta paz de espírito para alinhavar os escritos em que tenho trabalhado sem trégua. Sei que é impróprio incomodá-lo num momento em que a crise econômica parece não ter arrefecido conforme se esperava. Estou ciente das severas condições do mercado editorial, mas se o amigo puder me adiantar mais uma parcela dos meus royalties, tratarei de me isolar por uns meses nas montanhas, a fim de o regalar com um romance que haverá de lhe dar grandes alegrias. Um forte abraço." (p. 5)
O romance é uma mistura de sátira de costumes, farsa tragicômica e crítica social, como é o caso do pastor evangélico ligado a um maestro italiano que castra meninos pobres para que se tornem cantores liricos ou a banalização da violência que faz com que a população considere normal – e até mesmo incentive – as frequentes ações policiais com mortes. O nosso protagonista presencia muitos desses eventos nas suas caminhadas pelo bairro do Leblon, enquanto tenta encontrar a inspiração ou algum dinheiro para escapar do despejo anunciado.
20 de fevereiro de 2019 / "Há manhãs em que desço as persianas para não ver a cidade, tal como outrora recusava encarar minha mãe doente. Sei que às vezes o mar acorda manchado de preto ou de um marrom espumoso, umas sombras que se alastram do pé da montanha até a praia. Sei dos meninos da favela que mergulham e se esbaldam no esgoto do canal que liga o mar à lagoa. Sei que na lagoa os peixes morrem asfixiados e seus miasmas penetram nos clubes exclusivos, nos palácios suspensos e nas narinas do prefeito. Não preciso ver para saber que pessoas se jogam de viadutos, que urubus estão à espreita, que no morro a polícia atira para matar. Apesar de tudo, assim como venero a mulher incauta que me deu à luz, estarei condenado a amar e cantar a cidade onde nasci. [...]" (p. 48)
Apesar do tom bem-humorado, o livro provoca um desconforto permanente ao nos colocar frente a frente com o fantasma da solidão, sempre assustador quando visto assim de perto. Certamente, o final que confunde mais do que explica irá provocar muita polêmica, mas não é isso que se espera de toda obra de arte? Ponto para Chico Buarque, novamente.

Comentários

sonia disse…
O escritor pode simular o quanto quiser, mas sempre escapa uma parte de seu próprio existencial. Nesses pequenos textos já consegui perceber alguma coisa, como se estivesse camuflada naqueles testes para procurar uma figura oculta entre uma paisagem ou 3 ou 4 animais numa selva ...

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