Rafael Zoehler - Testado em Animais

Literatura brasileira contemporânea
Rafael Zoehler - Testado em Animais - Editora Patuá - 164 Pág. - Capa, Projeto gráfico e Diagramação: Alessandro Romio - Lançamento: 2020.

A antologia de contos Testado em animais, livro de estreia de Rafael Zoehler, vem com um elogioso texto de orelha de Marcelino Freire que, no seu usual estilo sem papas na língua, resume bem os motivos pelos quais devemos prestar atenção no jovem autor: "Não é metido a besta. Escreve que é uma beleza. Com facilidade. Sem delongas. Sem firulas". Na minha avaliação, acrescentaria – sem a vivacidade descritiva de um Marcelino Freire – que a técnica utilizada no livro é eficiente porque desperta a curiosidade e prende a atenção do leitor com base em um ótimo ritmo narrativo e diálogos precisos que sempre acrescentam elementos ao detalhamento do enredo.

Inspirados no realismo fantástico de Julio Cortázar e em referências da literatura kafkiana, os contos têm em comum o bom humor e a presença de animais ou de seres humanos que se comportam como animais, o que dá no mesmo. O conto de abertura, Não se pode consertar pó, é uma exceção desta regra porque lida com a emoção ao descrever sentimentos de perda e a passagem do tempo. Tudo acontece durante um improvável encontro do protagonista (certamente o próprio Rafael Zoehler) com o avô morto há muitos anos, em uma visita à antiga casa de família, enquanto eles conversam sobre as lembranças do passado, tentando completar as palavras cruzadas de um antigo jornal.

"Algumas coisas são quebradas em pedaços tão pequenos que viram pó. Não se pode consertar pó. Moído e moído e moído e passado na peneira. Fino de escorrer por debaixo das portas fechadas e pelos cantos das janelas de vidro. Tão insignificante que deixa de existir. Minha família é esse pó. Impossível montar de novo. O pó nunca volta a ser o que era. A única coisa que sobra é aquilo que se acumula em cima das coisas velhas. Velhas como essa casa. Parei com o carro em frente ao portão e não sei o que vim buscar aqui." - Trecho de "Não se pode consertar pó" (p. 12)

Em Gomenasai, Hideki, uma história de inspiração oriental, a tatuagem de uma carpa insiste em se deslocar de um lugar para outro no corpo de Midori, que exerce a curiosa profissão de modelo de mãos. Ela tenta de todas as formas eliminar a imagem do delicado peixe (preocupada em preservar as mãos, seu instrumento de trabalho), inclusive fazendo outras tatuagens, como um aquário, anzóis e até mesmo um tubarão predador, mas a cada dia a carpa teima em aparecer em um local diferente do seu corpo, escapando das armadilhas. O conto não deixa nada a dever ao estilo de Haruki Murakami, tanto em sensibilidade quanto em criatividade.

"Quando Midori acordou, a tatuagem não estava mais lá. Feita no dia anterior, na batata da perna esquerda, a pequena carpa de delicadas linhas negras havia sumido. O plástico filme permanecia no lugar certo, mas, da carpa, nem sinal. Era importante ter algo para impressionar a família de Hideki, e sabia que o futuro sogro criava peixes há decadas. Hideki em si não se importava. Nem com ela, nem com a tatuagem."  - Trecho de "Gomenasai, Hideki" (p. 72)

Mas, impossível mesmo é ler o conto Deus seja louvado sem rir sozinho. Uma inesperada tentação do demônio surge para a obesa Dalva, uma temente à palavra de Deus, quando um peixe na nota de cem reais vem provocá-la no chão do metrô. Ela percebe o momento preciso quando a nota cai do bolso de um rapaz ao retirar o celular do jeans e, provocadora, vem pousar bem diante de seus pés. Todo o conto é norteado por um diálogo entre o peixe na nota e Dalva, desejo e culpa travam uma luta sem treguas para conquistar a consciência da evangélica que é tentada pela picanha e maminha que poderia comprar para o churrasco de domingo.

"O rapaz, a poucos metros de Dalva, futricava no celular em pé como todo jovem de hoje em dia. Mexia no cabelo desgrenhado com a mão e, de vez em quando, tentava desgrudar a cueca da virilha puxando a calça embalada a vácuo. Um roqueirinho da Augusta. Futuro inquilino do lago de fogo e enxofre. Se passasse mais tempo no culto ouvindo a palavra e menos tempo com travestis, drogados e jogadores de RPG, teria um lugar no céu. Dalva viu o peixe cair do bolso dele quando o rapaz tirou o celular do jeans. O danado dançou um balé pelo ar, nadando no vácuo, até pousar com leveza bem diante de seus pés. Era azul com manchas brancas, tinha um queixo prolongado e boca de quem achou o suco de limão azedo demais. Dalva não queria olhar. Afasta de mim esse mal, Senhor. Mas o peixe provocava, e provocava bem." - Trecho de Deus seja louvado (p. 92)

Sobre o autor: Rafael Zoehler nasceu em Porto Alegre e passou a maior parte da infância e da adolescência em Manaus. Formado em Engenharia de Produção, trabalha como redator publicitário em São Paulo. Testado em Animais é o seu livro de estreia.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Testado em Animais de Rafael Zoehler

Comentários

sonia disse…
Esse livro deve ser fantástico!!!!!
Alexandre Kovacs disse…
Sônia, vale a pena conhecer o autor.

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