Lucas Verzola - A última cabra
Nos dez contos de A última cabra, os protagonistas são confrontados em situações de aparente normalidade que testam os seus limites éticos, morais e psíquicos, seja nas relações artificiais do ambiente de trabalho, na intimidade do lar ou até mesmo na simples rotina de levar os filhos na barbearia, algo desagradável está sempre prestes a ocorrer com esses personagens sem esperança e envolvidos por um ambiente de violência e solidão, típico dos grandes centros urbanos.
As epígrafes do livro são muito bem selecionadas e oferecem uma pista das referências que inspiraram a composição e seleção de cada um dos contos, gêneros que variam do realismo brutal (Roberto Bolaño, Raduan Nassar e Rubem Fonseca) até a literatura fantástica (Jorge Luis Borges e Murilo Rubião), resultando em estilo próprio que é mantido ao longo das narrativas. Uma ótima recomendação que comprova como a literatura contemporânea sempre encontra formas de renovação.
"Para entender Paulinho sentado nas escadarias do fórum, sem o pé esquerdo do sapato, com um guarda de cada lado, enquanto esperava a ambulância que o levaria para um semestre recluso na ala psiquiátrica do hospital do servidor público estadual, é preciso saber não só o que aconteceu no dia em que concluiu que não valia mais a pena viver, mas também as circunstâncias que o levaram até lá. Paulinho chegou à mesma conclusão a que muitos outros chegam todos os dias. Desconsiderando as hipóteses de impulso, mata-se (ou tenta se matar) aquele que, ao analisar o resultado de uma simples subtração, percebe que as vantagens de estar vivo são menores que as desvantagens. Ainda que intuitivo, o método sofre leves variações de pessoa para pessoa. Não em sua essência mas na gradação. Para alguém dar cabo da própria vida, não basta, como um observador menos atento pode concluir, que a balança penda para o amargor: é preciso que esse desequilíbrio ultrapasse determinada fronteira, e é essa linha que varia de acordo com o freguês." (p. 85) - Trecho do conto "O dia em que Paulinho iria se matar".
Em "Doses de conhaque e uma dança para garotos na bancarrota", Guilherme é um jogador compulsivo e viciado em drogas que decide levar o filho adolescente, Rodrigo, a um decadente programa no bairro do meretrício, regado a muito álcool. Nesta espécie de fábula sobre a perda da inocência, o jovem Rodrigo está prestes a ter a sua iniciação sexual, mas a repulsa ao ambiente, semelhante a "um beco de filme noir" com "paredes umedecidas e emboloradas", assim como o seu estado completamente alcoolizado, frustram essa tentativa inaugural que, no entanto, será informada como bem sucedida por Joyce, a também jovem, todavia, experiente profissional.
Em "Butim", um dos melhores contos do livro, uma oficina mecânica isolada e falida, desde a duplicação da rodovia principal, é o cenário do encontro entre um raro cliente que deseja trocar o pneu furado de seu carro e Artur, o mecânico que sonha conseguir uns trocados para "trocar a calça esgarçada e a camisa puída". Contudo, o inesperado cliente teima em barganhar o serviço e, após a cansativa negociação, "uma senhora gorda, que aparentava ter mais de 80 anos", passageira do carro avariado e mãe do mesquinho freguês, parece dar o seu último suspiro, enquanto é removida do veículo. Uma conclusão inesperada irá surpreender o leitor.
Outro destaque é o conto que empresta o título ao livro, "A última cabra", uma composição de diferentes camadas ocorrendo simultaneamente durante uma partida não finalizada de bagha-chall – jogo de tabuleiro tradicional do Nepal que representa a luta entre tigres e cabras – e a busca de Paulo por seu parceiro no jogo, Dong Park-Il. Fantasia e realidade se alternam nesta narrativa de inspiração borgiana.
"Não é a primeira vez que fujo dos tigres e estou bem satisfeita. Estamos sempre fugindo de algo e com os tigres ao menos me acostumei. Seus movimentos são previsíveis e, quando caçam solitários, não costuma ser um grande problema encurralá-los. Mesmo na estação em que a neve entulha-se nos pés do Sagarmatha, há pouco com o que se preocupar desde que fiquemos juntas. / No início, éramos vinte, mas quatro foram capturadas o que torna tudo mais complicado, é verdade. Ainda assim sobreviver é possível, desde que sejamos perspicazes. Em vez de nos espalharmos por todo o planalto, concentramo-nos nos flancos do terreno, onde o relevo já teima em virar montanha. É mais seguro que seja assim. Aqui, no ventre calmo da cordilheira, temos a percepção de que somos intangíveis. / Os tigres insistem. Marcham entre nós, ostentando a juventude de suas garras, mas quase nada podem fazer quando estamos protegidas por nosso amo, um homem sábio que veio do leste e de quem quase mais nada sabemos." (p. 119) - Trecho do conto "A última cabra".
Sobre o autor: Lucas Verzola é autor de São Paulo depois de horas (Editora Patuá, 2014), finalista do Prêmio Sesc de Literatura; e de Em conflito com a lei (Editora Reformatório, 2016), contemplado com o Proac na modalidade de Criação Literária – Prosa. É professor, parecerista, editor e um dos fundadores da revista Lavoura.
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