Mariana Basílio - Mácula - Editora Patuá - 208 Páginas
Capa, projeto gráfico e diagramação de Alessandro Romio - Lançamento: 2020.
Mácula é o mais recente livro de poesia de Mariana Basílio, um corajoso projeto que demonstra lucidez e engajamento político ao registrar o maldito ano de 2020, "o ano que durou dez anos" – e as consequências da pandemia de COVID-19 em nosso cotidiano – a partir de 50 poemas que tiveram os seus títulos selecionados em uma pesquisa que consultou 266 participantes nas redes sociais, sobre qual seria a palavra da vida das pessoas naquele dia 9 de junho de 2020, quando imaginávamos estar passando pelo auge da transmissão do vírus, triste esperança como sabemos hoje. A obra pretende ser, portanto, uma representação da sociedade brasleira neste período histórico, refletindo sobre os dramas individuais e coletivos.
A epígrafe de Carlos Drummond de Andrade, referência constante nos versos de Mariana Basílio, nos alerta para o protagonismo da dor nesta obra: "Provisoriamente não cantaremos o amor, / que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. / Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, / não cantaremos o ódio porque esse não existe, / existe apenas o medo." O projeto, chamado de As Confissões Negativas, mapeando a energia populacional brasileira, aponta para a nossa mácula social, cultural e política, mas também comprova a força da palavra e da poesia como um caminho de libertação do sofrimento, nos lembrando que tudo passa nessa vida como nos ensina a poeta em Solitude: "Logo, aqui estamos, veia coronária e calos. / Nossos nomes fazem um barulho qualquer. / Prontos a – de repente – desaparecer."
Deixo com vocês dois exemplos da força da palavra em Mácula, sabendo que também – ou principalmente – em tempos sombrios a poesia se faz necessária.
Luto
Para todos que já partiram, cedo demais.
Como envelhecer, promovendo a despedida?
Observar os objetos se descascando, inertes,
chacoalhar as tinturas das unhas roídas,
molhar todo o corpo, abotoar o longo véu,
escaldar o cansaço, assistir ao filme em que
a personagem favorita vai jantar novamente.
O sono, essa casa, pisoteia o meu receio.
As olheiras o virgulam como nunca.
Imagino aquela cachoeira que visitei na
metade da vida. Nela existiam os toques
chocados nas pedras, erguendo muros:
o frio, a histeria, e a ilusão de pertencer.
Contudo, o futuro disparava à juventude.
Despejar-me na travessa da gelatina,
colorir os meus fracassos com alegria.
Abraçar o vazio, o rompante do sofá,
a poltrona murcha, furada por garras.
Descobrir o buraco que se forma ao
dividir o antebraço, feito dois rios.
A ausência abrupta da mãe falecida,
o pai daquela menina literária morta,
a bebê da prima, uma Micaela morta,
o avô que matou e foi morto depois.
O amor morto traz a minha memória,
traz o conjunto das reações estranhas
estendidas com a cortina, cheia de pó.
Sobre a morte e a correnteza do ato,
me disseram que existem 5 estágios de
luto: negar, raivar, negociar, deprimir,
e, enfim, conseguir viver para aceitar.
Digerir o que é o céu e o que nos detém –
antes e depois de existir a ferocidade,
e o que nos une à lei da gravidade:
os cometas, os espasmos, as medidas
dos mangues e a força contínua das raízes.
Uma presença musical tão necessária é
escutar o outro em si mesmo – atentos.
Pois permanecer é sempre despedir-se.
Desgaste
Este é o ano dos cães raivosos
conseguirem atacar as lebres.
Do ranger do ódio e da fala,
que não sabem o que é perdão.
É o tempo dos falsos profetas
aglomerarem seus fiéis de máscaras,
enquanto o vírus os corrói nas
babas de mães, pelas cabeças.
O afago e o elo nulo dos que ali
conversam são quase extintos pela
política de dados divergentes, e
pelos anos que se afastam no
incêndio do prédio – e ainda molham
a roça que não pisamos mais.
As melancolias insolúveis: secar
o sol e quase crer na urdidura.
É cedo, e não morrerá ninguém
mais, enquanto o país que
não se cuida e só se engana
passar sorrindo, mesmo devendo
profanar a dor, ao despertar.
Há mínimas comoções sentidas.
Não importa mais amar o próximo:
carência, impaciência e hipocrisia
valem mais do que o leito vago no
hospital, valem mais do que o verme
mais sábio que o povo cegado.
O povo que facilmente se deixa moldar e
escuta rapidamente as trilhas sonoras.
Assim chegamos ao último dia do ano
de 2020, o ano que durou dez anos
completos, entre a voz e o eco dado.
Eles encheram nossas férias de vapor,
e não nos convidaram a sentar à mesa.
Teu pai morreu, com a tua avó também.
E ainda permanecemos aqui, juntos ao
espírito resgatado, às bordas unidas e
transbordadas, aos shows entorpecidos.
Eles se aglomeraram normalmente, pois do
chão ninguém passa – nem mesmo os fogos.
O recurso de se embriagar, pular,
brindar, combater o inimigo comum,
para transmitir do que a boca está
cheia, comendo a vida sem pestanejar.
A vida reconfortada, sub-reptícia,
na passagem do Ano Novo em que
verso à noite das águas, na coluna
do olhar de alegrias inúteis, findas.
Perdoai, eles não sabem como vivem.
Sobre a autora: Mariana Basílio nasceu em 1989, em Bauru, interior de São Paulo. Mestra em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), é prosadora, poeta, ensaísta e tradutora. Autora dos livros de poesia Nepente (2015), Sombras & Luzes (2016) e Tríptico Vital (2018, premiado com o Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo – ProAC 2017, finalista Residência Literária Sesc 2018 e finalista Prêmio Guarulhos 2019). É também autora da plaquete As Três Mal-Amadas (2018). Colabora em diversos portais e revistas nacionais e internacionais. Com patrocínio do ProAC 2019, apresenta seu quarto livro na poesia contemporânea, Mácula. No final do segundo semestre de 2020 recebeu da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo o “Prêmio por Histórico de Realização em Literatura” (ProAC Expresso).
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Comentários
Em dias de trovão caí bem uma poesia. Ainda que amarga, ainda que sendo sofrida como a realidade que vivemos.
2020 não acabou.