Milton Coutinho - No domínio de Suã
Milton Coutinho demonstra domínio da linguagem e segurança narrativa em seu mais recente lançamento ao confundir os limites entre ficção e realidade em um exercício constante de metaficção e intertextualidade no melhor estilo de escritores como Italo Calvino e Enrique Vila-Matas, sem contudo deixar de flertar com a técnica e ironia machadianas como, por exemplo, no clássico romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Trata-se, portanto, de uma obra na qual as memórias literárias e artísticas do autor assumem um papel central no contexto narrativo.
O tom irônico e provocativo está presente logo no título, uma referência ao primeiro volume – No caminho de Swann – de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, de caráter memorialístico, contrastando com a autobiografia do personagem-narrador Marcel Celano às voltas com a dura realidade brasileira contemporânea, notadamente na cidade do Rio de Janeiro, onde a divisão entre a cidade formal e as favelas, assim como o regime de exclusão social, provocam uma realidade brutal devido aos altos índices de criminalidade e violência.
Na primeira parte do romance, a narrativa é conduzida em primeira pessoa, assumindo inicialmente um caráter leve de romance de formação com destaque para a deliciosa descrição das memórias do protagonista quando criança e as peripécias do núcleo duro do matriarcado – formado pela avó, a mãe e as tias – na defesa do clã familiar a partir de um Estado-Maior em guerra contra os constantes avanços das moças "sem eira nem beira" em busca de matrimônio.
"[...] A família de minha mãe era um matriarcado incrustado no seio de uma sociedade patriarcal. Naquele período, a chefe do clã ainda era minha avó, mas antes havia sido a sua própria mãe (o bastão da liderança familiar se passava apenas por morte ou doença grave). Aos oitenta anos e com a saúde bastante debilitada, minha avó já havia designado minha mãe como sua sucessora (a esolha era quase obrigatória, já que tivera apenas duas filhas – separadas por sete filhos homens – e sua primogênita, Carmen, não se casara). Porque este sim era um fator determinante: a chefe do clã deveria ser casada ou viúva, ter gerado prole, e deixado manifesta sua dominação sobre o marido. [...] Aqui, cabe dizer que o critério utilizado para estabelecer a conveniência do matrimônio de filhos homens era fundamentalmente econômico, como em todas as uniões feitas à sombra do poder. A matriarca ambicionara, para sua prole viril, casamentos com herdeiras de grandes patrimônios ou pelo menos com jovens que trouxessem um dote considerável, digno da condição financeira de seus próprios filhos. Mas, quase como um escárnio do destino, um após o outro, todos eles haviam sucumbido aos encantos de moças sem eira nem beira (e nem um ramo de figueira, como gostava de acrescentar minha tia Luzia). Esse exército de noras miseráveis crescera ao ponto de tornar-se uma ameaça interna, que começava a pôr em xeque o poder central a partir das próprias fronteiras do reino." Trecho da primeira parte: A Colônia (pp. 15-7)
Todavia, o tom leve incial logo é substituído por uma complexa situação na qual se encontra o personagem-narrador a partir da relação do seu filho adotivo com a namorada de Suã (livremente inspirado em Elias Maluco, mandante do cruel assassinato do repórter Tim Lopes em 2002), um chefão do narcotráfico na comunidade de Nova Holanda no Complexo da Maré, o protagonista é envolvido então, assim como sua família, em uma sequência de fatos violentos dos quais não consegue escapar. O autor nos mostra como a ficção se esforça para atingir os níveis de "inverossimilhança da qual só a realidade é capaz".
Na segunda parte, narrada em terceira pessoa, encontramos o nosso protagonista em um exílio voluntário na cidade de Lisboa tentando se recuperar dos efeitos da violência no Rio de Janeiro, onde encontra o psicanalista português homônimo do padre Antônio Vieira que lhe receita um tratamento com base na apreciação de obras artísticas para cura dos seus males da alma. Na parte final, retorna a voz narrativa em primeira pessoa e a decisão de voltar ao Brasil para um acerto de contas com o destino. Um livro muito recomendado para todos aqueles apaixonados pela literatura e que vale a pena conhecer sem maiores revelações prévias sobre a trama.
"Imune a qualquer impulso criativo (com a exceção de um necrológio da mulher, escrito em forma de soneto), desde que ainda na adolescência abandonou o curso da Escola de Belas Artes, ele está mais do que satisfeito com a sua condição de leitor, da qual verdade seja dita se orgulha enormemente, por julgar que a sua leitura é atenta, qualificada e fervorosa. Fez da leitura uma profissão de fé, e o tempo que passa diante dos livros tem um quê de ritual. Recorda ter lido uma carta de Maquiavel ao amigo Francesco Vettori, na qual o autor d'O Príncipe afirmava que punha a sua melhor roupa para estar na companhia de seus livros. Se é um exagero, não importa; e ele adotou o hábito de vestir-se bem quando se senta para ler. Antes de iniciar a leitura de um volume, costuma abri-lo e aspirar-lhe longamente o perfume; em seguida, pousa-o sobre a superfície de sua mesa (quase um altar!) e começa a virar as páginas, acariciando-as demoradamente, sentindo-lhes a textura e o espessor. Só então está pronto para traduzir em significado os signos gráficos que a mancha da página lhe propõe." Trecho da segunda parte: A Metrópole (pp. 149-50)
Sobre o autor: Milton Coutinho nasceu no Rio de Janeiro em 1966. É autor de X, Y, Z (contos, 1995), Sanzio (romance, 1998) e As horas velozes (contos, 2001), um dos finalistas do prêmio Jabuti de 2002.
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