Denis Rafael Ramos - Para que se façam sempre os dias e as noites

Literatura brasileira contemporânea
Denis Rafael Ramos - Para que se façam sempre os dias e as noites - Editora Reformatório - 86 Páginas - Imagem de capa: "A leitora" (óleo sobre tela) de Auguste Renoir, 1875 - Design e editoração eletrônica: Karina Tenório - Lançamento: 2020.

A feliz escolha da capa nos remete ao impressionismo de Renoir no século XIX e antecipa, de certa forma, a técnica refinada empregada nesta novela de estreia de Denis Rafael Ramos que, apesar da curta extensão, nos encanta pela densidade e maturidade na condução da narrativa, ambientada em uma época e local indefinidos e sob o ponto de vista de Nazaré, o filho caçula que nos apresenta, por meio de suas lembranças, a história da própria família, marcada pela morte violenta do pai.

Uma opção acertada do autor foi trabalhar com a voz narrativa em terceira pessoa, o que deslocou o foco para outros personagens, seus dois irmãos, Florindo e Manoela, assim como revelou a origem da infelicidade dos pais. Ao longo do livro, percebe-se uma constante reflexão sobre a passagem do tempo e seus efeitos, "um tempo que de ano em ano, de estação em estação vai conosco de braços dados a nos adiantar as manias da morte para que a conheçamos e aceitemos como o fim inexorável" e, por outro lado, um tempo que só existe na memória, afinal, "na mente, morada das recordações, os dias não têm começo nem fim".

"Ela se referia às certezas verdadeiras, que habitam o passado e respaldam as enciclopédias. Aquelas devidamente mumificadas como biscoitos esquecidos no fundo de um armário. Pois, assim como o futuro, o presente é o desconhecimento de tudo, sendo impossível haver uma única certeza sequer sobre o que ocorrerá mesmo no átimo dos movimentos mais simples, involuntários e elementares do corpo. Vê: se piscas, fechas os olhos não sabendo se depois os terá abertos; pois respirando, como sabes se depois de expelir o ar dos pulmões terá o fôlego de vida necessário para inspirá-lo outra vez? Vês? Agora mesmo, quando lês as últimas aspas depos do "lês": tudo isto é o passado imutável e já não existem certezas no mundo. E as tens assim a multiplicarem-se atrás de ti enquanto vives. Acontece que, sendo elas o combustível da alma, os homens descuidam e as esquecem no fundo do armário em vez de mantê-las à vista. E por vezes esquecem para sempre, aceitando algum sentido em estarem só a respirar enquanto dedicam toda a vida a buscá-las em cada átimo. [...]" (pp. 30-1)

Trata-se de uma obra diferenciada por abordar temas difíceis como a morte, a perda da inocência e a relatividade do tempo em um espaço tão reduzido, tudo isso empregando sempre um cuidado artesanal com a linguagem, prática que tem sido pouco valorizada na literatura contemporânea, mas que certamente conquista até mesmo os leitores já anestesiados pela comunicação instantânea das redes sociais e a mediocridade do famigerado aplicativo WhatsApp.

"O açougueiro retirou-se indicando a Nazaré as botas de couro esquecidas ao pé do balcão. Ele calçou-as desajustado e com muita dificuldade, mas sem protestar, o machado perigosamente deitado ao colo. Levantou-se em seguida e pôs-se de pé diante do javali, o machado, agora, preso às mãos inseguras. Sem perceber, pisava o sangue que terminava de escorrer e em torno do qual as moscas voavam desordenadas. Começou a estudar o bicho a partir do gancho enfiado no pescoço e enjoou quando viu aberto o enorme talho na garganta. Num esforço involuntário, agarrou com mais firmeza o machado e encarou os olhos que o tempo apagava solenemente. Os olhos imóveis estavam ali semelhantes aos do pai, na noite em que o encontrara suspenso por um lençol amarrado a um sobreiro." (pp. 34-5)

Manoela, a irmã mais velha, aprendeu a superar o luto com base em suas leituras solitárias no quarto amarelo, antigo refúgio dos irmãos no passado quando, depois de terem vencido os dragões ocupavam-se com os cadernos de colorir. Vale muito a pena conhecer o trabalho de Denis Rafael Ramos, algo me diz que ainda vamos ouvir falar muito nele e não costumo me enganar com essas previsões.

"Desde o instante em que se defrontara com a morte do pai, Manoela embriagava-se, até a exaustão, das ilusões que exalavam de seus livros, à maneira de um náufrago em alto-mar. E foi neles também que acabou encontrando a ilha onde vive só e da qual não quer partir. Quando Nazaré vinha visitá-los, encontrava todos os motivos para a felicidade coletiva, e comovia-se com o luto eterno e solitário da irmã. Encontrava-a em seu quarto, ela voltava-lhe um olhar vago, liberto por ele de uma espécie de concentração assombrosa. Manoela tinha uma beleza que se aperfeiçoava dia após dia e que, no entanto, ela se empenhava em sonegar às tentações da juventude, ocultando-a ao mundo. Parecia certo que aquele aposento lhe servia apenas como outra camada dessa máscara inexpressiva, e essa dissimulação, pensava o irmão, beirava a loucura. Eles conversavam, e quando era questionada sobre os planos para o futuro, ela respondia com um sorriso indolente: 'Quem pode saber?`" (p. 68)

Sobre o autor: Denis Rafael Ramos tem 37 anos, é paulista, nasceu em Araraquara e vive atualmente em Guarujá. Para que se façam sempre os dias e as noites é seu livro de estreia.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Para que se façam sempre os dias e as noites de Denis Rafael Ramos 

Comentários

pausado tempo disse…
Obrigada pela leitura e os comentários, querido Alexandre. Sempre um privilégio ter a sua análise experiente e aparecer aqui no Mundo de K. Abração,
Alexandre Kovacs disse…
Oi Valéria, eu é que agradeço a sua visita e comentário! Grande abraço!
Caro Alexandre, que bom q a nossa literatura tenha veículos com conteúdo de altíssimo nível como neste Mundo de K. As suas resenhas são precisas e abordam os pontos fundamentais. Meus parabéns
Alexandre Kovacs disse…
Denis, parabéns pelo livro e boa sorte na divulgação!

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