Leonardo Valente - criogenia de D.

Literatura brasileira contemporânea
Leonardo Valente - criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos - Editora Mondrongo - 130 Páginas - Capa de Cláudio Duarte sobre a tela "Figuras em azul", de Ismael Nery (1920) - Lançamento: 2021.

Todos conhecemos os benefícios de um narrador pouco confiável como estratégia narrativa ficcional, tanto para a revelação controlada de elementos da trama quanto para a construção de um desfecho inesperado, contudo, em seu mais recente lançamento, Leonardo Valente leva este recurso até as últimas consequências ao nos apresentar um(a) protagonista sem gênero fixo que, ao desnudar-se de maneira farsesca, busca a perpetuação criogênica pela escrita, revelando ao mesmo tempo os impasses e ansiedades tão comuns do nosso tempo.

Um livro difícil de definir e resenhar porque a androginia de D. provoca uma falta de referência que a princípio desnorteia o leitor, mas permite ao autor se libertar da camisa de força do corretor ortográfico e escrever simplesmente, conduzindo o livro ou romance – na falta de definição melhor – para questões existenciais de caráter mais humanista, questões que, em última análise, independem do gênero masculino ou feminino.

"encontro-me finalmente seca e gélida como folha de árvore caduca em inverno de neve, e é seco pela frieza que vivo em plenitude, na abundância do que tenho de melhor. sou realmente feliz e farta nos momentos de aridez da alma, na temporada de desidratação da hipocrisia romântica; sou tranquilidade e transbordamento de mim mesmo nos preciosos períodos de desamor; neles sou arisca, maldoso e ardilosa, e vejo o que o idiota nunca viu ou fingiu não ver. é no desamor que consigo tornar-me escritor. oxalá que todo amor me torne seca. onde quer que eu esteja." - epílogo fora de lugar (p. 11)

D. é "portadora da síndrome da imunodeficiência afetiva", contraída de um de seus maridos e adotando um tom de tragédia pode  sacrificar a própria vida em nome de uma vingança como Anna Kariênina no clássico de Tolstói, uma das muitas referências literárias da obra que pode remeter ao mergulho existencial de Clarice Lispector em alguns trechos ou assumir uma falta de pudor frente aos padrões considerados normais da sociedade como em Hilda Hilst. Lembrando que todo este universo está na mente de Leonardo Valente, "Emma Bovary c'est moi!", citando Flaubert.

"minto tanto que às vezes não sei diferenciar a realidade do que inventei. sou um mentiroso de coisas fúteis e de coisas relevantes. minto para mim antes de mentir para qualquer outro, mas também minto para fora. dizem que é genético, herança de família, meu pai também mentia quase profissionalmente. contudo, sou melhor na arte de enganar do que meus parentes, pois desde muito cedo aprendi intuitivamente a revestir-me de credibilidade. não sei explicar, mas acreditam no que defendo até quando justifico o injustificável. minto tão bem que transformo as mentiras em verdade. nunca tive alergia a camarão, mas odeio aquele bicho com todas as minhas forças. odeio e tenho vergonha de dizer que não gosto, como pode alguém dada à boa cozinha ter ânsia de vômito apenas com o cheiro tenebroso daquela iguaria? [...]" (p. 33)

O livro nos faz pensar até que ponto, assim como D., podemos representar também uma grande farsa diante de nossas próprias contradições frente ao mundo das aparências. Entre os personagens apresentados, principalmente os cinco ex-maridos, todos chamados de Damião, ficamos na dúvida se não há apenas um que é o espelho da(o) protagonista ou mesmo do próprio autor. A epopeia de D. passa pelas etapas de poço, espelho e termina como gelo em uma criogenia obtida pelo papel que eterniza.

"sei agora que minha criogenia no papel é processo análogo ao do gelo. aqui, a escrita é quem eterniza, e ao eternizar congela, interrompe e torna tudo o que foi escrito apenas aquilo e o que se interpreta. mas para interromper, a escrita também cobra a vida, que passa a ser limitada a letras e sentidos que delas exalam. a escrita não admite dinâmica para fora dela, este é o preço que cobra para eternizar sentimentos, pensamentos e versões de mundo. e se a vida é muito mais narrativa do que a própria vida, a criogenia do papel é muito mais conservante do que a do gelo. conservar-me pela palavra, mais do que manter-me pela carne, é o que desejo. finalmente! mas continuarei tratando de gelo." (p. 55)

Uma obra experimental e corajosa que tem recebido elogiosas críticas e recomendações de escritores como Maria Valéria Rezende, assim como introdução de Pilar del Río. Termino com a citação ao próprio Leonardo Valente em determinado trecho do livro: "demônios começa(m) com D. deuses também."

Sobre o autor: Leonardo Valente nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 1974. Tem três romances e uma antologia publicados, entre eles "Apoteose" (Mondrongo, 2018), "O beijo da Pombagira" (Mondrongo, 2019), finalista do Prêmio Rio de Literatura, e "Calote" (Mondrongo, 2020). Em 2017, foi um dos vencedores do Prêmio José de Alencar de melhor romance, da União Brasileira de Escritores, com um original ainda inédito. É um dos organizadores da coletânea "Antifascistas" (Mondrongo, 2020), que reuniu alguns dos mais importantes nomes da literatura lusófona, e tem textos ficcionais em diversas publicações. Jornalista e doutor em Ciência Política, é professor de Relações Internacionais da UFRJ.

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