Zeh Gustavo - Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes
Os 21 contos de Zeh Gustavo reunidos nesta mais recente coletânea são constituídos por uma prosa muito própria, cadenciada e rica em neologismos, que busca reproduzir com lirismo a linguagem e os costumes das ruas do Rio de Janeiro e, ao dar voz a uma legião de personagens tipicamente cariocas, sempre em um tom confessional em primeira pessoa, produz uma literatura na melhor tradição de escritores que souberam retratar e eternizar a cidade, cada qual no seu tempo, tais como: Machado de Assis, João do Rio e Lima Barreto.
Uma outra característica do autor é flagrar os seus protagonistas – autênticos perdedores que ainda preservam uma dignidade possível, – em um realismo marcado por situações-limite das quais não conseguem escapar e fazendo os textos de Charles Bukowski parecerem ingênuos, como em Por sobre o ruído rude da rotina besta, narrativa ambientada em um conjugado de Copacabana, bairro "onde os sumidos não somem. Os sumidos se multiplicam" e o nosso protagonista, "um cara espinhento, 15 pra 16, tímido-assustadiço, come-ninguém", divide o pequeno espaço com a mãe, uma amiga "buça-profissa" e o filho dela, Zé Merdinha.
Já no conto de abertura, Carlito, o protagonismo é dividido entre o narrador, artista de rua, e seu boneco Carlito, amigo e instrumento de trabalho para apresentações no Centro da Cidade, cercados por "mijo farto, papelões e desaprumo", enquanto nasce um novo dia e surgem "homens e mulheres com pressa, bolsas e pastas pra lá e pra cá, salada nascente de buzinas e apitos e desassossegos em fornicação produtiva". Na verdade, apesar da brutalidade que os cerca, a improvável relação que se estabelece entre os dois é uma constatação de que ainda existe um resto de humanidade escondida em algum lugar em meio à pobreza e desesperança.
"Prepara-se, todo dia. Mais um salto. Dou o comando e ele vai. Agora rebola, Carlito. Ele rebola. As crianças começam a parar para ver. Só vendo mesmo, para crer. Os adultos namorantes também param fácil. Os obtusos, amargos, e os quase-amados olham de esguelha. Os cegos, fingem que não veem. Mas veem, ó se não! Os últimos serão os solteiros, distraídos todavia interessados. Agora, descansa Carlito. E ele se refastela, na calçada dos passadoidos. Se tivesse fome, eu juro que lhe pagaria um lanche. Mas, deixa para mim, se fome ele está liberado de sentir. Bom garoto o Carlito. Sua companhia é bacana, porque boneco não fala. Só não bebe umas comigo, ao fim do batedor. [...] Carlito, entanto, é frágil. Como toda gente, se explorada em suas demasias de força. Ele tonteja, capota, desmonta. E não é sujeito objeto assim de se consertar da noite pro dia não. Afinal, nem comer come, o coitado. E só respira ar de brabeira. Carlito vivencia, seu modo, o mundo, que nem é seu, quanto menos nosso. Nas quebradas, é sempre ele mais eu, palitando estrada pela cidade-cã." - Trecho do conto Carlito (pp. 12-3)
Em cada narrativa se repete o cuidado artesanal com o texto e a escolha dos temas é sempre uma surpresa para o leitor. Em O que restou da Malu, por exemplo, as lembranças de uma convincente narradora no final da vida nos remetem à sua relação dúbia de amor e amizade com Malu durante a juventude. O conto fica entre a comédia e a tragédia e traz a seguinte reflexão desconcertante: "A solitude, por opção ou ainda que sem. A solitude mora no arroz queimado cozido para duas porém servido para uma. O mais é a vida, curta, brava, bruta, fio", um fatalismo que revela a nossa solidão crônica nos grandes centros urbanos.
"Vim fazendo um inventário de meus ocorridos. Parece fala de velha coroca?! Antes seja! Sabe-se vulgar e nitidamente ser esta a maravilha de ser não jovem; fruto que madura traz história, memória turva, cansada mas ferina ao revivificar o passado. Funciona com método: desprezar o verniz realzão dos fatos, em privilégio de visar o que importa e fica. [...] Aos meus 19 ela me bateu na porteira: Malu, no seu segundo dia de estada na pensão onde nos conhecemos. Ela, bela, triste, a sorrir sempre de sem-graça? Essa a imagem inicial que formei. E que permanece. No momento pouco exato de nossa apresentação Malu me sorrisinhou assim de soslaio e se virou, na disposição apressada de arrumar seu leito, cama de baixo da maltrapilha beliche que compartilharíamos, doravante. Eu me subi, muda e dura. Até então tinha esperança de ficar um tempo só, no quartinho. Malu mordia devagar um bombom, numas de não fazer barulho, e me oferecia, marota, num esticar de braço pra cima. Magra de ruim, a Malu. Seu apetite num era de pedir arrego, jamais, tinha de uma gulosice... Malu, pouco e ralo estudo, ansiosa por futuro e presente. Pano passado tão rápido. [...]" - Trecho do conto O que restou da Malu (pp. 46-7)
No conto Tangerina de copo vazio, o narrador é um especialista na técnica de fazer as pessoas sumirem, mas sem "morte matada" conforme ele explica no trecho abaixo, contudo sem contar o segredo, até mesmo porque "zero de otários vão acreditar. Pra que contar então?" Um protagonista que ganha a vida fazendo "um bico para a turma do birinaite, da jogatina, da traficagem antiga" e vai logo de início conquistando o leitor na mais pura simpatia carioca: "Tangerina é minha graça":
"Tangerina é minha graça. Tentaram Mexerica, mas não colou. Casca de tangerina tem mais prumo. E Tangerina existe mais que Sem Tamanco, alcunha de adolescente que eu já fui. Malandro velho nem sempre usou farrapo. E tangerina, na minha conceituação, faz mais posto que laranja. Mais sabor, cheiro na mão sentido de longe. Laranja todo mundo que é. Tangerina, euzinho aqui, e só. [...] Mas hoje estou só o Tangerina boa-praça, não tô nem numas para apagar ninguém. Aliás, que me corrijo: não sou borracho para apagar com nada. O que dizem por aí não me importa. Sei o que faço. Se uns e outros somem é dever informar à malta que não sou eu o autor desta suma desaparecença. E que ese indivíduo dado pra sumido está achado pra lá de algum canto, enchendo a mufa de outro alheio. O indivíduo realmente some do pedaço. Isso eu faço sim, pode chamar, Tangerina na área. Mas cabe reavisar que esse trampo não é de morte, de morte matada como as línguas de trapo soltam nas fofocas dos botequins, nas famas que tentam me fabricar aos borbotões. De morte matada eu não sumo nem comigo, que já tava antes na fila, que dirá de outroquem." - Trecho do conto Tangerina de copo vazio (pp. 68-9)
O estilo quase experimental de Zeh Gustavo já nos desafia a partir do título que, acreditem ou não, fica muito claro após a leitura do respectivo conto. E assim acontece com os outros textos deste livro que provocam e nos fazem pensar, objetivo de toda boa literatura.
Sobre o autor: Zeh Gustavo é músico, escritor e revisor. Publicou, entre outros livros, Pedagogia do suprimido. É um dos organizadores do FIM (Fim de Semana do Livro no Porto).
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