Anderson Felix - Matei minha mãe

Literatura brasileira contemporânea
Anderson Felix - Matei minha mãe - Kotter Editorial - 244 Páginas
Projeto e Edição Gráfica: Cintia Belloc - Lançamento: 2020.

Anderson Felix surpreende neste típico romance de formação – na linha de Daniel Galera em Mãos de Cavalo ou Barba Ensopada de Sangue –, criando personagens carismáticos e diálogos bem construídos, só que adotando uma pegada ainda mais visceral. Matei minha mãe é narrado em primeira pessoa por Samuel dos Passos, um protagonista adolescente, morador da periferia de Florianópolis que acredita, como destacado no provocativo título, ter sido o responsável pela morte da própria mãe, direcionando toda a culpa e a raiva acumuladas para um hábito de isolamento e sessões de masturbação compulsivas.

A narrativa é feita em retrospectiva pelo protagonista e ambientada no final dos anos noventa, assumindo um tom direto e coloquial que empresta credibilidade à voz do personagem, um rapaz de apenas 15 anos frustrado com a falta de opções e cuja única referência afetiva, depois da morte da mãe e o afastamento do pai, sem tempo e atenção para ele, se concentra no irmão mais velho e no cachorro Tobias, seu melhor amigo. Os dias se arrastam solitários e parece não haver saída possível, como ele mesmo define em um bordão fatalista bem ao estilo de Kurt Vonnegut: "A vida é como é porque as coisas são como são".

"Não faz muito tempo o seu Zica tinha um boteco do lado de cá e a maioria dos bêbados morava do lado de lá. Na real, só quem mora depois da rodovia é a minha família, a da minha cunhada e o Buba. Mas como eu ia dizendo, tinha o boteco do seu Zica aqui perto, e pelo menos uma vez por mês algum bêbado ia pro vinagre tentando voltar pra casa. Na última a parada foi feia. Um senhorzinho foi atravessar pra comprar pinga e tropeçou no próprio chinelo, não tava bêbado nem nada, mas a gaiola com o passarinho caiu da mão e o coitado parou pra juntar. O primeiro carro que atropelou só pegou de leve e o senhorzinho conseguiu ficar de pé. Aí veio o segundo. Rasgou o velho e quebrou a gaiola. O passarinho voou fazendo um esperneio. O terceiro só serviu pra acabar com a malinagem. O estrago foi tão grande que o pessoal do rabecão não conseguiu juntar todas as peças, e no dia seguinte tavam os urubus comendo a carniça no canto da estrada. Acho que é por isso que o seu Zica nunca vendia fiado." (p. 14)

No entanto, o que já não está bom pode piorar ainda mais e as coisas se complicam realmente quando o irmão desaparece juntamente com a namorada, dando início à epopeia do nosso jovem herói que decide fugir de casa em busca do casal. Nesta viagem ele encontrará, em um curto espaço de tempo, pescadores, moradores de rua e a chance de finalmente perder a virgindade, sem os clichês das fitas de videocassete pornográficas.  

"Eu tinha onze anos. Minha mãe me levou na psicóloga do SUS. Lembro de olhar o Senna nas capas das revistas da mesa. Foi um ano estranho de tristeza e felicidade. A psicóloga me chamou, eu entrei e sentei na poltrona. Perguntou o motivo de eu tá ali. 'Não sei', respondi, pois eu não sabia mesmo. Chamou minha mãe e aí descobri, era por eu não conversar com ninguém. Porra, eu simplesmente não falava nada porque não tinha nada pra dizer. Só isso. Minha mãe deixou a sala, a psicóloga disse mais algumas coisas que não lembro e terminou com: 'Já pensou se todos no mundo fossem iguais a você?'. / Gostei. Foi massa ela ter dito aquilo. Mas quando entrei no elevador, pensei em mim. Senpre fui viciado em punheta, comecei aos nove anos. Na época só saía aguinha de arroz. Levei a frase da psicóloga em consideração. Pronto. Imaginei todas as pessoas do mundo tocando punheta enquanto faziam coisas do cotidiano. Esquenta um presunto na chapa e toca punheta. Passa o troco com uma mão e toca uma punhetinha com a outra. Algema o bandido com a esquerda e toca uma com a direita..." (p. 31)

A autenticidade da voz narrativa já nas primeiras frases: "Matei mina mãe. Enterrei meu amigo. Sou um punheteiro de merda. Eu entendo de merda. Eu sou um merda.", vai conquistando aos poucos o leitor que não tem como evitar a torcida para que o sofrido Samuel consiga algum sucesso na sua improvável empreitada e finalmente possa liberar toda a dor acumulada durante a sua adolescência. Vale a pena conhecer o trabalho do autor, um livro difícil de interromper e com um final inesperado.

"[...] Retirei o skate da mochila e liguei o walkman, rolava Queen com Don't Stop Me Now. Não era bem o som que eu queria, mas que se foda. Vamos nessa. Centralizei o skate, subi, dei uma remada e senti o vagabundo ganhar velocidade. O vento veio forte. O shape tremia em zigue-zague. Abri os braços e consegui manter o equilíbrio. As casas ao redor surgiam borradas. Joguei o peso pra frente e agachei o máximo que pude. Ô sensação boa de liberdade. Tava chegando perto do fim da descida, então coloquei o pé de leve no chão. Foi quando um carro saiu de ré da calçada. Não tive tempo nem de pisar no tail, só rasguei pra esquerda e desviei da traseira do filho da puta, isso me fez ir reto na dianteira de outro filho da puta que cruzava a rua. Pulei do skate, voei pra parede de algum lugar e biiiiiiiimmm..." (p. 153)

Sobre o autor: Anderson Felix nasceu em Florianópolis em 1983. Leciona Português em pré-vestibular há mais de dez anos. Já escreveu cerca de 60 contos, dois romances, além de roteiros para curta-metragens. Atualmente, trabalha com pesquisa no Projeto Atlas Linguístico do Brasil.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Matei minha mãe de Anderson Felix

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