Alan Pauls - A metade fantasma
Assim como no romance O passado, Alan Pauls volta a avaliar neste mais recente lançamento a intimidade da vida amorosa de um casal, no entanto, o contexto aqui é mais atual, abordando a influência da internet, particularmente das plataformas virtuais de comunicação e comércio, nas relações humanas, ferramentas que foram criadas pretensamente com o objetivo de aproximar as pessoas e atingem resultado oposto na prática, acentuando a solidão de uma época globalizada, ainda maior devido ao recente isolamento social provocado pela pandemia.
Por sinal, isolamento social é uma expressão que define bem o comportamento de Savoy, o protagonista deste romance, um homem solitário na meia-idade com um hábito muito peculiar: ele visita imóveis para alugar, de preferência ainda ocupados pelos antigos moradores, com a intenção de flagrar com essas "rondas imobiliárias" alguns momentos do cotidiano de corretores e locatários, essa estranha forma de voyeurismo o satisfaz sem a necessidade de aprofundar as relações. Com o passar do tempo, apesar de seus hábitos anacrônicos e certa resistência ao uso da tecnologia, Savoy descobre uma nova forma de se intrometer na casa e no cotidiano das pessoas, tornando-se um usuário compulsivo de uma popular plataforma de comércio eletrônico de objetos de segunda mão, que aproxima vendedores e compradores.
"Sempre morou em apartamentos alugados. Suas finanças, bastante estáveis para um país com certa propensão para o naufrágio, permitiam que escolhesse os prédios e bairros de que mais gostava, dispusesse das comodidades necessárias para uma vida como a sua e, às vezes, se desse a luxos muito acima de sua condição, uma garagem, por exemplo, ou uma sacada, que, aliás, usava muito raramente. Mas essa situação de desafogo nçao foi suficiente para que ele comprasse um, nem para consolos portáteis, como se imaginar no papel de proprietário, um exercício que ao menos permitiria que avaliasse melhor, de uma posição mais idônea, as vantagens e desvantagens da condição que lhe estava proibida. Aparentemente, como a grande maioria de seus semelhantes, Savoy alugava porque não podia comprar. [...] Pagava, ele mesmo ia todo mês pagar pessoalmente, com a pontualidade de um aprendiz apaixonado, não tanto por obséquio ou excesso de responsabilidade, mas para não se privar de um gosto cujo hábito contraiu muito cedo, com seus primeiros aluguéis: o contato com seus locadores, que era mais gratificante quanto mais fugaz e superficial fosse. [...]" (pp. 9-10)
A vida de Savoy está para mudar radicalmente quando ele conhece Carla, uma jovem conectada, "seus únicos apegos eram seu telefone e seu computador", mas sem residência fixa, que trabalha como "house sitter" internacional, cuidando de casas vazias e animais de estimação na ausência dos proprietários. Após um breve relacionamento "presencial" quando ela passa pela Argentina, Savoy e Carla irão depender do fantasmagórico mundo virtual para manter contato, um mundo de vozes metalizadas, imagens pixeladas e conexões instáveis. Alan Pauls explora as contradições e a insegurança de um relacionamento improvável.
"Carla vivia 'no mundo': duas semanas em Madri; três em Oaxaca; dez dias em Montevidéu; cinco em Varsóvia; se é que os traslados de um destino a outro, sempre a uma média de dez mil metros de altura e nessas câmaras de abdução que são os aviões, tinham lugar 'no mundo'. Era raro que tivesse mais de duas ou três semanas livres por ano e era bastante comum que recusasse pedidos. Tinha as notas máximas nos quatro sites de house sitting nos quais estava registrada. Muito rápido, depois de uma semana se vendo dia sim, dia não, média de encontros diários – com pernoite incluído – e quase uma de convivência casual, menos inesperada para Carla, segundo Savoy, que para Savoy, que essbarrava na evidência da nova situação toda vez que, ainda dormindo, procurava às cegas sua escova de dentes na prateleira de vidro do banheiro e não a encontrava [...]" (p. 94)
O protagonista alterna o uso do Skype e seus protocolos de comportamento, que ele aprende aos poucos (ler trecho em destaque abaixo) com as visitas à piscina pública em Buenos Aires onde parece habitar um universo diferente que não é o real nem o virtual: "Brilhos, reflexos ondulantes, cores que vibravam. Uma cortina de hexágonos luminosos caía a quarenta e cinco graus. Escamazinhas de luz a tilintar na água como lentes de contato perdidas." Um livro recomendado porque nos faz pensar sobre a influência de todos esses dispositivos eletrônicos e aplicativos criados tão recentemente e que se tornaram tão centrais em nossas vidas.
"Com Carla, no entanto, Savoy chegava aos encontros um pouco antes da hora, pensando que ela também estivesse disponível, aqueles cinco ou dez minutos roubados serviriam para despachar os preâmbulos erráticos do small talk e resolver os desajustes que com frequência atrapalhavam o arranque da conexão, câmeras desligadas, vídeo sem som, imagem pixelada, vozes que respondem tarde, demasiado tarde, perguntas que caducaram sem volta – todos esses defeitos menores, quase engraçados, capazes, no entanto, de provocar acessos de perigosa irritação, porque por algum motivo pareciam acontecer sempre de um dos dois lados, nunca dos dois ao mesmo tempo, o que exonerava o gênio maligno da conexão e jogava a responsabilidade naquele dos dois que tivesse cometido a temeridade de denunciar primeiro o problema ('Estou te vendo e te ouvindo perfeitamente: deve ser a tua conexão'), que Savoy, como que instado pela contagem regressiva de uma agenda apertada, não a dele, sem dúvida, não se conformava em solucionar dentro do espaço próprio do encontro, talvez por julgá-los indignos de um tempo tão valioso. [...]" (pp. 183-4)
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar A metade fantasma de Alan Pauls
Comentários