Adriane Garcia - Estive no fim do mundo e me lembrei de você
A mineira Adriane Garcia já é presença garantida aqui na casa, tendo consolidado o seu nome no cenário da poesia brasileira contemporânea com os recentes: Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta (ed. Caos & Letras, 2020). Neste lançamento, ela nos manda lembranças de um local que, infelizmente, está cada vez mais próximo. Os poemas aqui alertam para o descuido do homem ou, mais precisamente, da "elite detentora do capital" em ter levado o ecossistema e a nossa própria espécie à beira da extinção, como descreve Ana Carolina Neves no ótimo prefácio. Afinal, parece que não precisamos do choque de um asteróide para destruir o planeta.
E, no entanto, apesar do tom apocalíptico, ainda há esperança para a nossa "terra minguante", apesar do fim iminente, enquanto existirem bichos reais ou imaginários, "a coreografia dos pinguins", "narvais com chifre de pégaso", "um leopardo de pelos dourados e manchas negras", ou até mesmo os "seres microscópicos flutuando na água salgada dos oceanos". Sim, talvez o planeta tenha alguma chance, enquanto existirem poemas como "do topo da cadeia alimentar": "[...] Embora pareça tarde / Você precisa estar comigo para transformar em palavras / Outros seres, o vento na pele, o cheiro de uma flor chamada / Dama-da-noite, você precisa sentir ternura pelos filhotes / De todas as criaturas, quando nos formos / Tudo será sem nós."
O livro faz parte da coleção "Biblioteca Madrinha da Lua", título de um dos livros da poeta mineira Henriqueta Lisboa que conta ainda com “Quem tem pena de passarinho é passarinho”, de Líria Porto; “Lança chamas”, de Regina Azevedo; e “Até aqui”, de Lúbi Prates. Uma iniciativa da Editora Peirópolis para divulgar a poesia contemporânea brasileira escrita por mulheres.
souvenir
Para me llembrar deste lugar
Desta viagem
Destas companhias
Do lugar estranho que é o Fim do Mundo
Do lugar sempre prestes a acabar
Por mim ou por si
Para me lembrar de que o Fim do Mundo
Foi o máximo de céu
O máximo de inferno
E que ainda assim me fotografei
E sorri
Para lembrar que esta foi a minha única viagem
Para te lembrar de mim
Quando eu não estiver mais
Aqui.
abissais
Somente os animais mais resistentes
Sobrevivem às maiores profundidades
Não é fácil ser profunda
Deve admitir que não vê direito
Depois tem que enxergar de outras formas
Desenvolver tentáculos, por exemplo
Uma antena, para viver de profundidades
Há de se conectar com a intuição
E de tanto viver no fundo, sua cor ficará metálica
Sua pele se tornará translúcida
É possível que não a vejam
Ou que a vejam como uma alienígena
Porque você será esquisita, lenta
Dedicada ao fascínio de explorar funduras
Tudo será escasso
Menos a profundidade
Sem uma gota de luz
Vai acabar inventando luz própria.
encruzilhada
Todos os felinos se parecem com meu gato
Todas as crianças se parecem com minhas filhas
A tigresa ondula entre as heras
Ouço o silêncio das pisadas fantasmas
Preocupo-me com a presa e com a caçadora
Tenho pena do cervo, mas se ele foge
A tigresa não leva comida
Para casa
Fico pasma com a sinceridade dos bichos
Minha violência é mil vezes pior
Culpo-me pela carne
Desonesta, no supermercado
Não posso viver em uma reserva
Aqui as áreas protegidas se chamam
Condomínios fechados
Do lado de fora gente pode morrer à vontade
Melhor não ver as caçadas nos jornais
Melhor não desistir
Melhor molhar minhas plantas
Melhor dar comida ao gato.
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