Alan Pauls - O passado

Literatura argentina contemporânea
 Alan Pauls - O passado - Editora Companhia das Letras - 608 Páginas - Capa: Violaine Cadinot
Tradução de Josely Vianna Baptista - Lançamento: 2022.

Este é o quarto e mais importante romance do argentino Alan Pauls, escritor, jornalista, roteirista e crítico de cinema, considerado um dos grandes nomes da literatura latino-americana contemporânea. O livro foi o vencedor do conceituado Prêmio Herralde de 2003, concedido para obras de ficção em língua espanhola, adaptado em 2004 para o cinema em filme homônimo de Hector Babenco e lançado originalmente no Brasil pela saudosa Editora Cosac Naify em 2007, sendo relançado agora pela Editora Companhia das Letras, juntamente com a campanha de promoção do novo e aguardado romance de Alan Pauls: A metade fantasma.

Rímini e Sofía decidem se separar após 12 anos de uma relação intensa, invejada pelos amigos, que começou ainda na adolescência. A decisão é pacífica e ambos parecem concordar que o melhor caminho é que cada um siga a sua própria vida, sendo o que realmente fazem no início. Contudo, enquanto Rímini logo encontra outra relação estável, dedicando-se ao trabalho de tradutor, acelerado pelo uso da cocaína, e dedicando-se a sessões diárias de masturbação compulsiva, Sofía, por outro lado, não consegue se desligar do passado, sempre se fazendo presente por meio de telefonemas, cartas e encontros casuais, ela não aceita o final do amor.

"Tinham feito tudo. Defloraram-se; raptaram-se de suas respectivas famílias; viveram e viajaram juntos; juntos sobreviveram à adolescência e depois à juventude e chegaram à vida adulta; juntos foram pais e choraram o morto diminuto que nunca chegaram a ver; juntos conheceram professores, amigos, idiomas, trabalhos, prazeres, lugares de veraneio, decepções, costumes, pratos exóticos, doenças – todas as atrações que uma versão prudente, mas versátil, desse misto de surpresa e fugacidade que normalmente se chama vida podia oferecer-lhes, e de cada uma tinham conservado algo, o rastro singular que lhes permitia recordá-la e voltar a ser, por um momento, os mesmos que a haviam experimentado. E para que a coleção ficasse completa, eles mesmo acrescentaram a peça fundamental: a separação. Como tudo, eles a planejaram juntos, com o cuidado, a dedicação, a minúcia artesanal com que haviam cunhado os troféus do amor ao longo do tempo, e durante o mês e meio que levaram para organizá-la, nada, nem uma pitada de despeito ou desconsideração, atreveu-se a sombrear a pureza com que tinham decidido despedir-se. [...]" (pp. 60-1)

Uma paixão que tem tudo para terminar em tragédia, as transformações da relação ao longo do tempo, o esforço inútil de manter ou esquecer o passado, são todos temas comuns na literatura e na vida, mas a maneira como o autor desenvolve a sua história é perturbadora porque acabamos nos identificando em algum momento com os personagens, Rímini ou Sofia, dependendo da nossa personalidade e histórico emocional. Neste romance, Alan Pauls demonstra o domínio de uma prosa caudalosa que, ao longo de 600 páginas, nos faz lembrar de escritores como José Saramago ou Javier Marías, mestres na arte de conduzir digressões.

Na verdade, algumas dessas digressões podem ser tão extensas ao ponto de originar histórias paralelas como a do artista plástico fictício Jeremy Riltse, um elo de ligação entre Rímini e Sofía desde o início de seu relacionamento, expoente da "Sick Art", um movimento que tem como base a automutilação e a utilização de partes do próprio corpo na obra, de preferência com algum tipo de enfermidade ou deformidade: Riltse vaga pela Europa "colecionando misérias, perigos, enfermidades tudo o que possa me servir de matéria-prima". O autor parece associar essa visão depressiva e mutiladora ao amor sem esperança dos protagonistas.

"[...] Os móveis nunca são um problema nas separações. Por mais impregnados que estejam de significados, sempre servem, e essa utilidade de algum modo lhes permite continuar vivendo, refazer sua vida em condições e contextos novos. Mas as fotografias, como a maioria dessas quinquilharias simbólicas que os casais acumulam ao longo do tempo, perdem tudo quando o contexto que lhes dava sentido se dissolve: não servem literalmente para nada, não têm nenhuma posteridade. De certo modo, só lhes restam dois destinos: a destruição – Rímini tinha pensado nisso, mas desanimou ao se imaginar passeando com prazer por um campo atapetado de fotos queimadas, como um Átila conjugal – ou a partilha. O erro de Rímini fora não decidir nada: ter se limitado a renunciar. De modo que as fotos ficaram ali, estancadas em sua indeterminação, como amuletos que, retirados de circulação, não tivessem outra coisa a fazer a não ser acumular energia e significado." (p. 68)

O romance é dividido em quatro partes, sendo que cada uma narra o relacionamento de Rímini, com uma mulher diferente. Por exemplo, na primeira parte, a transição da separação de Sofía para o início da relação com Vera, uma mulher dominada por um ciúme patológico que tem o azar de encontrar Sofía, uma terrorista emocional, pela frente. O livro é difícil de resenhar devido à extensão, variedade e complexidade dos simbolismos utilizados pelo autor, mas muito recomendado como obra de literatura que incomoda e faz pensar sobre a própria vida, sobre uma caixa de fotografias que insiste em assombrar o casal depois de tantos anos, quem não?

"[...] Certa noite, propôs-lhe que fosse morar com ele. Vera se iluminou, mas se conteve em seguida; olhou-o nos olhos longa, inquisitivamente, como se desse a ele a chance de pensar melhor nisso. Rímini não se acovardou, e Vera perguntou-lhe mil vezes se tinha certeza, se era de verdade, se era isso que ele queria, se pensara bem, se propunha isso porque queria ou porque... – e ele disse sim, sim, sim, e ela, com voz clara e grave, como se fosse um documento legal, passou a enumerar todos os defeitos com os quais se propunha a conviver, diferenciando os que tinham solução dos irreversíveis, os frívolos dos indispensáveis, e ele, abraçando-a com gratidão, concordou com todos, acrescentou, inclusive,  alguns que ela havia omitido, e enquanto a beijava no pescoço disse-lhe que não acreditava que houvesse defeitos com solução. Ela riu. Ele a afastou um pouco para vê-la rir e nisso entreviu uma rápida sombra de medo atravessando-a e seu sorriso se transformando numa careta de espanto. Ela caiu no choro, suplicava que ele não parasse de abraçá-la. 'Não posso evitar', disse, 'quando tudo está bem, sempre penso que uma tragédia está próxima.'" (pp. 167-8)

Literatura argentina contemporânea
Sobre o autor: Alan Pauls (Buenos Aires, 1959) é escritor, jornalista, roteirista e crítico de cinema. Foi professor de Teoria Literária na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e fundador da revista Leituras Críticas. Entre seus principais livros se destacam os ensaios de Como se escreve um diário íntimo (1998), O fator Borges (2000) e A vida descalço (2006) e os romances O pudor do pornógrafo (1985), O colóquio (1989), Wasabi (1994), O passado (2003), História do pranto (2007), História do cabelo (2010), História do dinheiro (2013) e A metade fantasma (2021).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O passado de Alan Pauls

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