Julia Barandier - Bakken
O romance de estreia de Julia Barandier surpreende pela segurança na utilização de diferentes técnicas narrativas, tais como o gênero textual diário, fluxo de consciência e até mesmo poesia, apresentando ao leitor a improvável amizade de dois homens solitários de meia-idade em busca de algum tipo de compensação na arte para lidar com suas perdas emocionais. Portanto, trata-se de um livro desafiador tanto na forma quanto no conteúdo e no qual, adicionalmente, não podemos acreditar nas pistas que os personagens pouco confiáveis revelam, formando a nossa própria versão a partir dos múltiplos pontos de vista e fragmentos narrativos.
Antônio, um arquiteto brasileiro, após o divórcio decide recomeçar a vida em Copenhagen, Dinamarca, passando a escrever cartas para Marta sua ex-esposa que nunca são enviadas; textos que se transformam em uma espécie de diário, conectando passado e presente. Antônio logo conhece Hans, um artista dinamarquês que mantém um estúdio e decide ensiná-lo pintura, um sonho antigo de Antônio que nunca havia se realizado. Os dois iniciam uma jornada de descobrimento da arte e da cidade, enquanto as fragilidades de Hans, decorrentes de seu histórico familiar, vão sendo compartilhadas e fazendo da solidão um elo comum de ligação.
"Marta, Alguém ainda escreve cartas? Sonhei com uma menina de cabelos alaranjados muito longos e acordei de madrugada abalado. Ela balbuciava alguma coisa enquanto a raiz de seus cabelos ia ficando roxa. É o luto, conseguiu dizer com clareza. Vai percorrer o meu cabelo inteiro. Quando não restar mais nenhum fio laranja, é porque chegou a minha hora de viver de novo. Não voltei a dormir. / Minhas coisas ainda estão empacotadas. Mamãe achou que eu fosse desistir. Vi na expressão dela durante todo o percurso que fizemos até o aeroporto, como se eu estivesse pregando uma peça. Estou aqui, tão longe do Rio de Janeiro, mas ainda não desfiz as malas. / Na semana antes de partir, comecei a enxergar você em todos os lugares, nos rostos de todas as pessoas. Fui a um café e vi uma xícara borrada de batom, abandonada no balcão. Tive certeza de que era sua. Passei o dedo na borda com o intuito de recolher a tinta, mas em um sobressalto percebi o que estava fazendo e corri ao banheiro para limpar as mãos. Também jurei ter te visto em uma farmácia, no banco de trás de um táxi e no jardim do Senhor Donofre. Gostei de não te ver em nenhum lugar desde que cheguei aqui. / A minha terapeuta em nossa última sessão, sugeriu que eu tentasse escrever uma autobiografia em tópicos. Ela quer te descolar de mim, como se o divórcio não tivesse sido suficiente. Não, desculpe. Ela quer que eu queira me descolar de você. Mas não sei se é este o caso. Não caminho com você por perto. Esbarro com você em alguns momentos, só isso. De qualquer forma, não escrevi nada. Mais tenho a dizer sobre o meu sonho. Sobre prateleiras e portões de embarque e minha mudança repentina para um outro país. Qualquer outra coisa. Antônio." (p. 16)
“Bakken” é o nome do primeiro parque de diversões do mundo, que fica em Copenhagen e é incluído nos roteiros de turismo da cidade que Antônio e Hans planejam fazer, mas a visita acaba nunca ocorrendo. Entre as muitas sutilezas narrativas da autora, destaque para a comparação entre a técnica do pintor e do escritor, a forma como ambos descortinam um universo que vai sendo apresentado em diferentes camadas: "Hans / este é um quadro sobre solidão / é o que eu deveria ter dito / willem dafoe interpretando van gogh pelos campos da holanda / flores e terra / ele dizendo / I am my paintings / não sou todas as minhas / sou esta."
"Marta, Peguei algumas fotos de pinturas famosas na internet e quase me esquivei, querendo olhar para qualquer outra coisa. Eventualmente, deixei-me hipnotizar. São mansos, os quadros. Tenho tentado perceber como me sinto diante deles e do trabalho de outros artistas. Uma maneira de me aproximar é copiando o estilo, os tons. Hans sugere internalizá-los só olhando, pois é assim que eles realmente entram em nós. / Raramente percebo o meu corpo. Raramente pinto corpos. As fotos que tenho em mãos, das telas de uma pintora austríaca, são sobre habitar uma pele, uma fisionomia, uns ossos. Ou ser habitado. O traço é grosso, muito diferente do meu. Eu não pensava o meu traço, ele era hesitação. Agora chamo de estilo. Cansei de olhar. Rabisquei no caderno duas figuras com as costas prensadas uma contra a outra. Quero reproduzir a maciez da tinta que copio, o azul do mar. Eu nadaria se pudesse. Agora mesmo. Largaria o caderno e nadaria no Arpoador. Água é tinta também, estar submerso é pintar-se. Me arranha assim, em uma tarde ou outra, a saudade do Rio de Janeiro. / O rabisco me basta. Manuseio outras fotografias. Figura humana pisoteando uma cidade inteira. Mas você nunca, Marta. Eu." (p. 85)
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