Lilia Guerra - Amor avenida
Primeiro romance de Lilia Guerra, publicado originalmente em 2014, Amor avenida está sendo relançado agora pela Editora Patuá, um livro que assim como os mais recentes – a antologia de contos Perifobia e o romance Rua do Larguinho –, também aborda o tema das mulheres negras excluídas, sobrevivendo nas comunidades carentes das periferias dos grandes centros urbanos brasileiros. Contudo, em Amor avenida a miséria extrema é apresentada nos seus aspectos mais cruéis, infelizmente perpetuados pelo preconceito e o racismo estrutural da nossa sociedade, evidenciados a partir das ações (ou falta de ações) do Estado e das instituições oficiais no acesso diferenciado aos serviços públicos básicos, tais como: segurança, saúde, educação e justiça.
O romance tem como base a trajetória de Viviana que, sem condições de se manter no interior após ter sido abandonada pelo marido, entrega a filha mais velha, Julinha, para ser criada e decide se mudar com a filha caçula, Nininha, para a cidade de São Paulo no final da década de 1950 para trabalhar como doméstica. No entanto, a personagem principal é mesmo Ana, Nina, Nininha ou Bujardim, como foi chamada em várias fases de sua vida, desde a infância feliz na casa onde a mãe trabalhava até as dificuldades posteriores na adolescência devido à pobreza, incluindo o preconceito na escola, a fome e as ameaças de despejo. Mesmo escrevendo sobre temas tão difíceis, Lilia Guerra sabe como conquistar o leitor com a beleza e a força do seu texto.
"As reuniões eram, para Nininha, um verdadeiro suplício. Dias em que, perto do encerramento da aula, os responsáveis adentravam a sala e as crianças cediam o assento, ficando em pé, ao lado das carteiras, enquanto a professora discutia assuntos relacionados ao aprendizado e ao comportamento. Geralmente, eram as mães que compareciam a essas reuniões. Nininha sentia muita vergonha quando elas penetravam a sala, perfumadas e bem vestidas, e as meninas competiam para ver quem tinha a mãe mais bonita. Viviana chegava quase sempre atrasada e esbaforida. Por vezes, nem mesmo tinha tempo para retirar o avental, o lenço de cabeça, ou trocar os chinelos que usava para trabalhar. Subia a ladeira correndo. suava. Passava entre as escrivaninhas e, embora Nininha não os encarasse, percebia o olhar de repúdio dos colegas. Quase podia ler seus pensamentos: 'preta, fedida'! Leva o troféu de mãe mais feia da classe. E Viviana portava-se como se todos ali fossem seus patrões e, consequentemente, como se a todos devesse obediência. [...] A mãe de uma aluna condoeu-se e levou ao colégio uma sacola com peças para doação. Viviana fez questão que Nininha calçasse uns sapatos já no dia seguinte. Esperava que a benfeitora observasse o quanto fora útil o seu gesto e o repetisse. Mas os sapatos eram grandes demais. Foi preciso aplicar chumaços de papel em cada ponta. Quando a menina que era a antiga dona dos calçados os viu nos pés de Nininha, passou a esbravejar e a exigir que ela os devolvesse. Nininha tentou argumentar, explicar que a mãe da garota os havia doado, mas não houve acordo. E quando, humilhada e revoltada, chegou em casa descalça, ainda levou uma surra. Viviana a acusou de orgulhosa. Disse que, se ela tivesse realmente tentado explicar à amiguinha que se tratava de um presente, a outra jamais a faria devolvê-los. E que, por ser tão arrogante como havia aprendido com a madrinha, merecia castigo." (p. 35)
Em um determinado ponto da trama, a "única mão estendida" para Viviana escapar da fome e das ameaças constantes de despejo, já sofrendo com o reumatismo precoce e com suas filhas reunidas novamente após alguns anos em São Paulo, é a mão do "doutor", um homem com mais de setenta anos, respeitável ancião do bairro, que se interessa por Nininha, cuja infância é abreviada em nome do sustento da família. Consentido pela mãe, tem início então o estranho relacionamento que se manteria na clandestinidade por muitos anos e acabaria se tornando uma espécie de único amor possível. Mesmo sabendo que o tempo é escasso, Nininha lutará como possível pela sua felicidade e a da filha, broto solitário que desabrochou como um lírio na sua vida.
"[...] Não. Não aceitaria a investida do advogado, que era um aproveitador. Mas o 'doutor'... o doutor a quem Julinha referira-se tantas vezes como um homem bom e generoso, educado e não dado a grosserias. Parecia-lhe que, no fim das contas, aos pobres era indicado um único destino. E, assim como havia procedido há muitos anos, entregando a filhinha mais velha aos cuidados de outras mãos, a fim de evitar que ela morresse de fome, também decidiu confiar o destino desta outra nas mãos daquele homem que desejava 'ajudá-las'. Parecia certo que, mais cedo ou mais tarde, a menina teria que conhecer a vida. E, se tivesse que se perder nas mãos de um vadio qualquer, o que ocorreria logo, sobretudo se andassem errantes pelas ruas como estava previsto, que ao menos tentasse, então, poupar a todos do sofrimento, sujeitando-se a segurar a única mão que se mostrava estendida. Dizia essas coisas a si mesma, tentando justificar o injustificável. Despejo. Doença. Única mão estendida... as palavras se misturavam. Nininha, aturdida com o choro da mãe, refletiu que não podia ser tão ruim trabalhar na casa daquele homem. Estava acostumada às grosserias de patrões, até saía-se bem. Não desejava levar aquela vida por muito tempo, faria o possível para arranjar algo melhor. Mas, se era pelo bem de todos, se sacrificaria um pouco mais. Continuaria procurando outra colocação, mas por enquanto estava decidido. Aceitaria a proposta do homem, já que parecia ser o único remédio. E disse isso à mãe. Viviana olhou fixamente para ela. E, dando de ombros, arrematou: – Sua alma, sua palma." (p. 91)
Uma narrativa triste sem dúvida, assim como a vida de muitas mulheres comuns da periferia que, ainda assim, conseguem extrair um resto de dignidade do sofrido cotidiano. Mais um romance emocionante de Lilia Guerra que vai ficar na lembrança pela beleza do texto e a importante denúncia contra a desigualdade social em nosso país.
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