Adriane Garcia - A bandeja de Salomé
Apresentando um conceito semelhante aos poemas reunidos em Eva-proto-poeta, este mais recente lançamento de Adriane Garcia também seria em outros tempos um ótimo candidato à fogueira, juntamente com sua autora, condenada por questionar os dogmas de uma religião estabelecida sobre estruturas patriarcais. De fato, principalmente no Antigo Testamento, a bíblia perpetua uma espécie de legitimação para a dominação masculina com base em narrativas cruéis nas quais o modelo de submissão da mulher é exaltado como exemplo moral e validado por uma antologia de textos que justificam muitas vezes a exploração sexual e o feminicídio.
Curiosamente, nas versões propostas por Adriane Garcia, as parábolas bíblicas recontadas do ponto de vista feminino ganham em sensibilidade, sem prejuízo da mensagem religiosa que passa a ser interpretada de uma forma bem mais humana e verdadeira: "Atire a primeira pedra / Quem quiser mais um pecado // Mas no tribunal não alegue / Defesa da falsa honra // Assuma a imoralidade / De transformar gente em coisa // E alegue a sua vergonhosa defesa / Da propriedade." (A Lucidez da mulher adúltera). Uma bem-cuidada edição bilíngue português-espanhol com tradução de Manuel Barrós, orelha de Cinthia Kriemler e introdução de Maria Valéria Rezende.
A TESOURA DE DALILA
Este seu cabelo longo, meu querido
Revela o seu voto sagrado, você gosta
Gosta de parecer santo, diz que foi promessa
Mas
Eu que estou ao seu lado é que sei o quanto
Os de fora dizem coisas boas a seu respeito e eu sorrio como se
Você não fosse capaz de destroçar uma leoa a punho
Sei bem que seduz com banquetes e enigmas para
Se ver num espelho, para se fartar da derrota dos outros
Da ira que o faria incendiar uma cidade inteira
Eu suportei, noite a dia, dia a dia
A sua sede de vingança, a sua missão divina, a sua mão pesada
Nem toda a prata do mundo pagará o que eu passei
Cresce a lua e dentro de mim também cresce uma semente
É agora ou nunca, é por ela, ninguém disse que ia ser fácil e eu sabia
Aproveito que você dorme, é uma dor imensa cortar o passado
Mas.
A CONFISSÃO DA OUTRA MÃE
Nós duas tivemos nossos bebês na mesma época
Éramos amigas e dormíamos no mesmo quarto
Em uma noite, eu adormeci em cima do meu bebê
E ele morreu
Desesperada, troquei meu filho morto pelo filho vivo de minha amiga
E passei a noite cuidando dele, tentando diminuir a minha dor
No dia seguinte, minha amiga acordou com um corpo frio ao seu lado
E se deu conta de que aquele era o meu filho e não o dela
Então foi tomada de horror
Tanto porque o meu bebê, que ela também amava, estava morto
Quanto porque agora eu amamentava o seu como se fosse o meu
Eu estava tão fora de mim que não devolvia o seu filho
Não queria tocar no meu bebê morto e
No meio do choro e da gritaria
Os vizinhos nos levaram ao rei Salomão
Como nós duas afirmávamos que éramos a mãe legítima do bebê
O rei, tido como grande sábio, pegou uma espada
Dizendo que dividiria a criança em duas
Dando-nos uma metade para cada uma
(minha amiga gritava ininterruptamente que o bebê era dela
ele chegou a mostrar a lâmina)
Neste momento – e só neste momento – voltei a mim
E vendo a gravidade do que eu tinha feito
Falei ao sábio que o devolvesse à verdadeira mãe
Imediatamente, ele concluiu que me entregassem o menino
Nunca mais vi minha amiga
Mas ela jamais dissera que partissem a criança ao meio.
O MÉTODO DA MULHER DE LÓ
Quem olhasse para trás se tornaria
Uma estátua de sal
Foi o dito e
Todos sabiam
Como qualquer um sabe
Que cortar o pulso
Como qualquer um sabe
Que tomar veneno
Como qualquer um sabe
Que se enforcar na corda
Como qualquer um sabe
Que pular de um penhasco
Mas me tornar uma estátua de sal
(perdoem-me por não aguentar mais, minhas filhas)
Me pareceu mais rápido
Menos doloroso
Do que acompanhar aquele homem
Vendo o que eu via
Todos os dias
Dentro da minha casa.
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar A bandeja de Salomé de Adriane Garcia
Comentários