Jorge Sá Earp - O fio da seda
O mais recente lançamento de Jorge Sá Earp é um sensível romance de formação com base nas suas memórias da infância até a adolescência. Na primeira parte, apesar da narrativa em terceira pessoa, os fragmentos das lembranças escapam do autor como um fluxo de consciência, revelando o que ficou marcado na mente da criança que viveu na casa em Lages, Santa Catarina: as histórias que a mãe lhe contava, a convivência com a Babá e o tio-avô, o urso Zé de textura macia e olhos pretos de botão que o protegia do gigante da cortina, assim como os seres que habitavam o quarto, personagens formados por tecidos, almofadas e tudo que a imaginação infantil pudesse criar.
No romance, o autor empresta as suas memórias para o protagonista Igor, obedecendo a uma sequência não exatamente linear, ditada mais pela emoção do que pela lógica, a narrativa avança ao longo dos anos sessenta para outras residências onde a família morou em Teresópolis e no Leblon, Rio de Janeiro, apresentando uma sequência de amigos e familiares com os quais Igor convive, sempre se comportando como uma criança tímida, isolada das demais, ainda sem entender os primeiros sinais de sua orientação sexual homoafetiva.
"Igor desenhava a lápis sobre uma pequena pilha de um papel amarelado e cortado em quadrados para caber na gaveta pela espátula de osso com cabo preto do tio-avô. Enquanto rabiscava – e fazia uns poucos traços com as figuras quase esboçadas das fadas, príncipes e princesas (gostava mais das histórias com seres humanos do que as com bichos) –, contava alto suas histórias inventadas na hora, com essa atração criada pelos contos desde pequeno com a mãe ao pé de sua cama e, mais tarde, com Babá, que lhe narrava os 'causos' acontecidos na roça, da mula-sem-cabeça (era a que mais temia), o saci e a princesa roxinha (uma invenção dela ou quem sabe uma história africana transmitida pela avó, que Babá dizia ter sido laçada no continente negro). Tinha na coxa a marca branco-rosada da mordida de um bando de gansos que a atacara na roça, em Campos. Falava 'mei-di' quando o relógio marcava doze horas e 'de já hoje' para dizer 'desde hoje'." (p. 18) - Primeira parte "A coroa e o lustre"
É na segunda parte do romance, na transição da infância para a adolescência, que o interesse sexual de Igor por garotos se estabelece definitivamente, provocando uma grande crise familiar quando os pais descobrem o seu diário e decidem encaminhá-lo para um tratamento psicológico de forma a "curar a enfermidade mental ou anormalidade". Obviamente a "terapia" não resultou em qualquer alteração no comportamento de Igor, mas a vigilância constante dos pais acabou contendo por algum tempo a sua tendência sexual com o custo psicológico de aumentar ainda mais a timidez e o consequente deslocamento social nos eventos familiares e reuniões com amigos.
"Depos de alguns minutos lutando entre a ânsia e o medo ergueu-se suave e silenciosamente e esgueirou-se até o leito vizinho.Depôs então os lábios com a delicadeza de uma asa de inseto sobre o calcanhar de Guilherme. Como ele não demonstrasse a menor reação demorou um pouco mais de tempo sua boca sobre aquela pele e foi deslizando a mucosa úmida em cima da pele lateral até a região dos dedos. Aí o primo se moveu e Igor saltou com a agilidade de um mosquito rejeitado por um movimento de braço para a cama. Arfou no travesseiro com o único olho descoberto dirigido para aquele corpo agora novamente imóvel mas numa posição diferente. Apesar do temor crescente do despertar do primo, o desejo foi sufocando pouco a pouco esse sentimento e o conduziu de novo para fora da cama. Dessa vez, como que se o medo submetido conferisse mais força à sua ânsia, mergulhou a boca nos dedos do pé do primo. E então fruiu um imenso prazer. Ali permaneceu um tempo que lhe pareceu largo o bastante para sua ousadia." (pp. 90-1) - Segunda parte "O diário"
Na parte final, Igor enfrenta muitos problemas devido ao ambiente hostil no colégio, mas acaba encontrando colegas que o ajudam a vencer a timidez e assumir as suas escolhas, enfrentando a solidão que algumas vezes o amadurecimento provoca. Sabemos, a partir da nossa própria formação, como a memória pode ser seletiva e traiçoeira, quase uma ficção que manipulamos em função daquilo que esperávamos da realidade, logo é impossível saber o quanto há de verdade e imaginação nas lembranças do autor, mas esta é justamente a beleza da literatura.
"Em uma aula de redação a professora costumava – para terror dos tímidos – escolher um aluno para fazer uma exposição sobre um tema de escolha da vítima, uma redação oral, como ela assim denominava a prova. O período nefasto por que passava Igor determinou que ele fosse eleito naquele dia. Como havia dito que gostava de desenhar histórias em quadrinhos, a professora sugeriu que falasse sobre o tema. / O sangue de Igor refluiu inteiro para suas faces quando subiu no tablado. Sua voz gaguejava. A maneira de abordar o assunto não se estruturava em seu cérebro. Transpirava nas costas e na testa; ele era todo embaraço em cima do palco. A plateia então começou a soltar gritinhos, risadas e logo assobios. Esses esparsos rumores ganharam volume como uma avalanche até se tornar ensurdecedor. Uma tempestade de uivos, gritos ásperos e falsos suspiros se abateu sobre a classe, apesar das insistentes ordens de silêncio da professora, farta da anarquia, que ameaçava destituir definitivamente sua autoridade, espancou a mesa e dispensou o examinando – a única solução para encerrar aquela fúria de sarcasmo." (pp. 117-8) - Terceira parte "Migração"
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