Elieni Caputo - As coisas de verdade habitam as pedras

Literatura brasileira contemporânea
Elieni Caputo - As coisas de verdade habitam as pedras - Editacuja Editora - 60 Páginas - Arte de capa e miolo de Fabiana Carelli - Lançamento: 2023.

Após o corajoso exercício de autoficção e ensaio sobre o tratamento psiquiátrico em nosso país apresentado em Laço de Fita, o mais recente lançamento de Elieni Caputo – que chamaremos também de romance na falta de uma definição melhor – é uma obra de caráter experimental com base na alternância das vozes narrativas de dois personagens, como em Um sopro de vida de Clarice Lispector. Neste livro, Elieni parte da inusitada estrutura de diálogo entre uma princesa e um sapo para abordar as suas próprias reflexões existenciais em uma prosa com sabor de poesia e que, no final, funciona como um surpreendente fluxo de consciência.

Para entender as tais coisas de verdade que habitam as pedras e que a autora tenta descrever, precisamos deixar um pouco de lado a objetividade e as convicções do cotidiano, compartilhar o estado de sonho proposto no livro e ocupar um improvável espaço entre o consciente e o inconsciente: "Não sou preenchida porque guardo sonhos em mim e eles não têm solidez. Sou assim vazia de sentido. A realidade pesa, é cheia de certezas, e o mal se nutre das convicções. A dúvida é um cuidado com onde se pisa, é uma delicadeza ao se aproximar do outro e ao tocá-lo. Não me fira mais porque fui feita sem carapaça, careço da dureza que protege." 

"Foi aos seis anos que descobri a eternidade. / A imagem era de um sapo engolido pela cobra: já tinha devorado quase metade do anfíbio, quase metade da parte traseira, o alimento ainda vivo. Mesmo com a metade dilacerada o sapo permanecia vivo, eu via pela cara com algum movimento, os olhos assim quase mortos, paralisados, mas ainda... vivos. / E descobri uma certa inutilidade minha pra salvar alguma coisa porque um ser nesse estado não podia ser salvo, então restava esperar a cobra engolir a outra metade e assim cessar a agonia... minha agonia porque o sapo parecia assim... paralisado, até sem dor, morto-vivo. / Resignado a ser engolido todo e assim virar a cobra de certa forma, assim virar a eternidade na pele da serpente. A fusão filogenética reptilanfíbio. Assim, uma espécie de ouroboros. O sapo em breve sem pele, em breve descarnado. E quando virasse cobra, descarnado periodicamente. / Sou periódica como a cobra. Me perdia inteira quando crescia, perdia a criança, só sobrou assim a cor dos olhos, até o cabelo mudou. / Perdi eu mesma várias vezes e ainda permaneço inteira. Seria isso certa dose de eternidade? / Talvez várias cobras tenham interceptado meu caminho, eu sequer tenha visto, eu paralisada diante da grandeza que me deglutia. Eu, a criança que já fora digerida, em breve a adulta consumida pelo sabe-se lá o quê," (p. 7) - Princesa

A solidão nos acompanha em boa parte da vida e também na morte, mas como ensina a autora: "A certeza de ser só é o primeiro passo pra compartilhar a alegria, é estar consigo para poder estar com os outros e abraçar. O abraço, a primeira ponte. [...]" A bem-cuidada edição do livro conta também com aquarelas de Fabiana Carelli e estruturas gráficas que complementam o texto da mesma forma como em uma publicação infantil, fazendo com que a assimilação dos temas abordados e a experiência de leitura se tornem um pouco mais leves.

"O sapo é um acaso da criação, é rocha provida de olhos, rocha cujo coração foi amolecendo de uma ternura feita de corpo e movimento. A ternura se transformou em salto, o sapo pula, é o instante e o momento. [...] O sapo é o alcance do cerne da existência na tonalidade da terra. Existir tem meu formato, cor e consistência. Ser sapo é pura presença. Revelei à menina o sentido da vida quando ela revirou uma pedra e me encontrou debaixo. A menina estranhou saber me diferenciar da pedra porque naquele instante éramos a mesma coisa, um encaixe perfeito, eu paralisado nem lembrava algo vivo. Naquele momento eu era o prenúncio do surgimento da vida na Terra, o inanimado de onde brotava uma anima ainda indiferenciada das coisas duras. Deixei a menina confusa." (pp. 40-41) - Sapo

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Elieni Caputo nasceu em 1981 e reside em São Paulo, capital. Graduada em Psicologia pela UFSCar e em Letras pela PUC-SP, é mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC, doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP e membro do GENAM – Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura, Narrativa e Medicina. Publicou quatro livros: Laço de fita (Quixote +Do, 2022), Violência e brevidade (Penalux, 2020), Casa de barro (Patuá, 2018) e Poema em pó (7Letras, 2006). Seus poemas foram publicados em diversas revistas e coletâneas de concursos literários nacionais e portugueses.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar As coisas de verdade habitam as pedras de Elieni Caputo

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