Mariana Ianelli - Turno da madrugada

Crônicas
Mariana Ianelli - Turno da madrugada - Edições Ardotempo - 272 Páginas
Capa e internas: Fotografias de Mariana Ianelli - Lançamento: 2023.

Costumo dizer que o brasileiro é um craque na arte de escrever crônicas, inusitado casamento do jornalismo com a literatura, um estilo que não consigo identificar com a mesma originalidade em outros países. De fato, gerações de grandes escritores se tornaram mestres no gênero, tais como: Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, para citar somente alguns nomes. Este mais recente lançamento de Mariana Ianelli reúne 130 textos, publicados entre 2010 e 2022 em livros, jornais e sites, provando que a crônica ainda persiste no gosto popular, apesar da injusta competição com a televisão, redes sociais e, mais recentemente, os famigerados grupos de WhatsApp.

Em Turno da madrugada, as crônicas podem ter sido escritas no calor da indignação provocada pelo noticiário ou outras mais longamente elaboradas. Contudo, em ambos os casos, o olhar da autora nos oferece o mesmo tratamento poético que transforma os eventos aparentemente simples do cotidiano em pura literatura. Portanto, a inspiração pode vir de um menino que deixa escapar o seu balão azul ou do som de um telefone insistente tocando na solidão da madrugada. Por outro lado, a crueza da realidade se impõe com a publicação de um decreto que libera o uso de armas com base na "farsa da autodefesa e do embuste chamado bala perdida". Seja qual for o tema abordado, a emoção está sempre presente em cada texto. 

"Às vezes, de madrugada, soa um telefone lá embaixo na rua. O bairro quase todo dormindo, e um telefone chamando no vazio, como se fosse sempre a mesma pessoa do outro lado da linha, o mesmo insone incansável a quem nunca ninguém respondeu. A madrugada tem dessas fantasias, dessas ilhas de âmbar, sóis de pequenas lâmpadas daqueles que esperam, que estudam, que vigiam. / Vem com a noite um silêncio bom, um silêncio nuançado de sons, murmurações, assobios, o momento ideal para crimes bíblicos, ciladas de dança com espadas, fugas, orgias. Alguém sonha que sobe uma escada até o céu, alguém observa através de uma cortina, alguém conspira. As ocorrências parecem mínimas, mas coisas tremendas estão acontecendo em cubículos, em porões, em garagens, em jardins, quem sabe até ali nos fundos do sobradinho bonito da esquina. [...]" (p. 39) - Trecho da crônica Tocadores de Biwa.

Algumas crônicas são dedicadas a importantes nomes da literatura nacional e internacional, como: Clarice Lispector, Sophia de Mello Breyner Andresen, Cecília Meireles, Emily Dickinson, Mario Quintana, António Lobo Antunes, Vinicius de Moraes, Hilda Hilst​ e Wislawa Szymborska. O amor pelos livros é um tema recorrente, por exemplo quando Mariana Ianelli comenta como os autores se organizam e se acomodam em uma biblioteca, independente de suas diferenças: "O que a vida afastou, uma biblioteca reconciia, de modo que Sartre pode agora dividir pacificamente o espaço de alguns centímetros com Merleau-Ponty e Camus, e pode García Márquez topar com Vargas Llosa, e Saramago ter Lobo Antunes como um bom vizinho."

"Assim Mario Quintana nomeava a poesia: crônica da Eternidade, loucura lúcida, pedra no abismo, água de beber da concha da mão, pomo da árvore da sabedoria. Ele sabia. Ele, que era leitor de entrelinhas, aprendiz de feiticeiro, corujo colorido com alma de vira-lua, pinta-mundos, operário da escrita trabalhando a café e fumo. / Poeta de quintanares e filosofanças, chamava o crítico literário de piolho de andorinha. Combatendo cabotinismos, era a favor dos soldados desconhecidos da poesia. Tinha horror a declamadoras e escolas poéticas. Tirava bons motivos de riso dos concretistas. Instado a explicar um poema, respondia perguntando o que será que Deus quis dizer com este mundo. Não gostava de adaptações de romances em histórias em quadrinhos, não gostava de rock. Gostava era de grilos na madrugada, de cigarras, de um realejo de outono, da flauta de um anjo no telhado, e dos sons que vêm de longe, sinos passos, uma chaleira chiando, risadas de criança depois da aula, escada abaixo. [...]" (p. 105) - Trecho da crônica 110 anos de um cronista da eternidade.

Certamente, para os autores contemporâneos torna-se um desafio manter o nível dos cronistas de gerações passadas e vencer a velocidade dos meios de comunicação atuais, assim como a propagação de notícias falsas, geralmente de caráter sensacionalista. Somente mantendo um estilo pessoal é possível conquistar e manter os leitores, sempre carentes de informação confiável e de qualidade. Neste contexto, recomendo a antologia de crônicas de Mariana Ianelli, felizmente uma oportuna constatação de que o gênero ainda tem muito a oferecer.

"Estão abertas as vagas para carrasco no Sri Lanka. Como requisito para o emprego de remuneração equivalente a menos de um salário mínimo, os candidatos devem apresentar 'excepcional caráter moral' e 'excelentes faculdades mentais'. Basicamente, alguém de mãos firmes e coração invulnerável. Não vá o carrasco se deixar impressionar pelo olhar de um condenado, como o verdugo de Hilda Hilst. Não vá questionar o merecimento da pena nem se gabar de executá-la com exagerado entusiasmo. / Um carrasco é uma criatura sem voz e sem rosto, tanto mais medonha quanto mais mansamente idiota, bicho criado no aprisco da lei, cujas mãos profissionais são as mãos de muitos homens. Se for para enlouquecer, que seja dentro dessa normalidade aparente de executores e condenados. Talvez colabore nesse enlouquecimento manso o uso de cordas em vez de lâminas. Não pensar certamente colabora muito. Não sentir colabora ainda mais." (p. 157) - Trecho da crônica Profissão: carrasco.

Crônicas
Sobre a autora: Mariana Ianelli nasceu em São Paulo em 1979. É autora de quinze livros de poesia, entre eles a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca vinte anos desde sua estreia, e América – um poema de amor (2021). Tem quatro livros de crônicas (Breves anotações sobre um tigre, Entre imagens para guardar, Dia de amar a casa e Prazer de miragem) e três infantis (Bichos da noite, Dia no ateliê e A menina e as estrelas). Já colaborou com textos críticos para os jornais O Globo (Prosa & Verso), Valor Econômico (Caderno Cultural), O Estado de S. Paulo (Caderno 2) e Rascunho. Foi editora da página Poesia Brasileira, no Rascunho, de 2018 a 2022. Recebeu o Prêmio Fundação Bunge de Literatura (Juventude) em 2008, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) em 2011 (livro Treva alvorada) e menção honrosa no prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade 2021. Foi quatro vezes finalista do Jabuti em poesia livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois e Tempo de voltar) e vencedora do Prêmio Minuano de Literatura na categoria Crônica, com o livro Dia de amar a casa (2020).

Onde encontrar o livro: Turno da madrugada de Mariana Ianelli pode ser adquirido pelo e-mail da Editora: ardotempo@gmail.com

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