Sílvia Mota Lopes - Túnica Íntima
A portuguesa de Braga, Sílvia Mota Lopes, poeta, pintora e ilustradora, publicou uma extensa obra dedicada à literatura infantil e juvenil. Contudo, nos surpreende nesta antologia poética, Túnica Íntima, lançada em 2022, com versos que me fazem lembrar de sua conterrânea Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), referências a uma poesia de imagens, luz e mar. De fato, os poemas de Sílvia confirmam a tradição cultural lusitana de cantar a terra, o sol, o vento e a magia do oceano: "Abarco o rumor das ondas / vacilando entre brisas e silêncios / os seixos alinhados no veio da areia / a apneia do poeta / regressando ao vago da janela."
Além da conexão com a natureza, os poemas expressam a sensibilidade feminina diante dos impasses existenciais que a brevidade da vida apresenta: "Ficou-lhe na cabeça aquela frase / escutada na véspera / enquanto passava o rímel pelas pestanas, / 'Depois de velha é que ficaste bonita'. / Recebeu-a como um elogio, / mas a frase ainda lhe absorve os dias. [...]" Ou ainda nesta belíssima homenagem ao amor que ignora os efeitos da passagem do tempo: "Ontem carregava a volúpia da pele / hoje o corpo é sangue seco / ausente / fez-se outono / sorrio quando o contemplas / como se nele se cumprissem todas as primaveras."
Deixo com vocês alguns exemplos do trabalho de Sílvia Mota Lopes, ainda pouco conhecida no Brasil, e a sua técnica de escrever poemas como quem desenha traços coloridos em uma tela: "Quando as mãos são aves / a cabeça pousa tranquila sobre o tempo. / Nele, sente-se a solidez do barro / moldado em galáxias luminosas / derramado em gestos cúmplices de ternura. [...]"
O poema enche-se de silêncio
voltamos o olhar à intimidade das palavras
o entardecer é uma criança com sono.
Há o mar,
os barcos que rebentam pelas costuras
desvanecendo numa onda
para morrer.
Ninguém como eles conhece melhor a voz do mar
a saraiva que lhes percorre o dorso num falso sossego
a turva melancolia marítima.
Onde poderão assentar o casco?
A fome dilata a viagem
a proa enrijece
ao som de uma gaivota.
Ficou-lhe na cabeça aquela frase escutada na véspera
enquanto passava o rímel pelas pestanas,
“Depois de velha é que ficaste bonita”.
Recebeu-a como um elogio,
mas a frase ainda lhe absorve os dias.
Remeteu-a ao passado recordando a transformação
do seu corpo, as formas e os contornos da carne,
os olhos fundos das noites mal dormidas, o peito
sugado pela fome, as gretas, os braços manchados
de cansaço que embalaram as dores,
mesmo as mais imprevisíveis.
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