Luís Fernando Amâncio - Estilhaços

Literatura brasileira contemporânea
Luís Fernando Amâncio - Estilhaços - Editora Patuá - 96 Páginas - Projeto gráfico e capa de Henrique Lourenço - Lançamento: 2023.

Os contos de Luís Fernando Amâncio nos lembram do bando de neuróticos que convivem nos grandes centros urbanos, um grupo do qual infelizmente fazemos parte. O título é bastante apropriado porque as narrativas pontiagudas e cortantes, apesar de bem-humoradas, espelham situações do cotidiano com uma fina ironia que pode evoluir até o sarcasmo. Um bom exemplo do estilo do autor é a ótima abertura do conto "Pé de Chumbo", com um protagonista-narrador, nada confiável, que vai te fazer lembrar de alguma situação já vivenciada na sua vizinhança: "Nunca te vi, mas isso não me impedia de te odiar. É natural que o morador do andar de baixo tenha raiva de quem habita o apartamento de cima. Deve existir alguma lei que justifique esse sentimento, inclusive."

Em outros contos, o autor destaca flagrantes do dia a dia mostrando como a vida pode se transformar em uma selvagem batalha entre indivíduos, particularmente em situações relacionadas a acidentes de trânsito ("Em chamas" e "Cruzamento perigoso") ou naquelas originadas pela desigualdade social ("No playground" e "Espera"). Contudo, as melhores narrativas são mesmo aquelas que evidenciam as dificuldades da convivência em um condomínio, como em "Sistema de câmeras" que encerra o livro com uma protagonista aposentada assumindo a função de síndica e o controle das câmeras de segurança das áreas comuns do prédio. Para desespero dos outros moradores, ela logo perceberá o poder de possuir as cenas comprometedoras.

Pé de Chumbo
Um conto de Luís Fernando Amâncio

Nunca te vi, mas isso não me impedia de te odiar. É natural que o morador do andar de baixo tenha raiva de quem habita o apartamento de cima. Deve existir alguma lei que justifique esse sentimento, inclusive.

A lei do bom senso, quem sabe.

Quando você chegou na portaria do prédio, minha paz saiu pela garagem. Não por acaso, eu lhe reservei um apelido carinhoso: Pé de Chumbo. Não sabia o seu nome, mas acompanhava, literalmente, seus passos. Firmes socos alvejando o meu sossego.

Quando você está em casa, é como se houvesse um maníaco batucando em meu teto. Nunca fiquei tão feliz por alguém ter um trabalho. É o único momento em que eu encontro serenidade para organizar meus pensamentos.

Mas não bastam os passos firmes. Sua rotina, Pé de Chumbo, é bem barulhenta. E a acompanho de perto. Infelizmente. Desde cedo, quando você se levanta e vai para o banheiro, dá a descarga, que soa como um trovão sobre minha cabeça.

Dali, você segue para a cozinha. Enquanto as pessoas normais fervem água para passar um café, o amigo Pé de Chumbo toma vitamina. E gosta dela bem batidinha, suponho. O liquidificador fica por minutos ligado. O barulho irritante se alonga por tempo demais.

Depois, a corrida na esteira. Sabia, Pé de Chumbo, que temos um belo parque aqui perto? Praças, avenidas. Você podia tomar um ar, ver gente se exercitando. Se exibir, se for desses. Mas não. Prefere a esteira. E ouço seu corpo pesado – você está acima do peso, Pé de Chumbo? – caindo violentamente a cada passada no aparelho.

Depois que você acorda, Pé de Chumbo, não tenho mais a opção de dormir.

Depois do banho – em que limpa as vias aéreas escarrando escandalosamente – vai embora. Retorna no fim da tarde. Novos passos martelando acima de mim. Descargas. Liquidificador. Aspirador.

Não nos esqueçamos dos móveis. Parece que nada pode ser levado de um lugar ao outro sem ser arrastado. Imagino seu chão riscado de tanto empurrar cadeiras, poltronas, armários.

Você não é solitário. Recebe amigos. Às vezes, eles vão sozinhos. Um amigo, uma amiga, uma reunião pequena. Vocês riem, falam alto, bebem cervejas, comem tira-gostos – ouço a água da torneira caindo na pia no dia seguinte, lavando a numerosa louça acumulada.

Conforme a noite avança, as histórias ficam mais engraçadas, a julgar pelas gargalhadas.

Há noites, porém, em que a reunião é maior. Mais convidados. Aí, a situação beira o insuportável. São dezenas de pés espalhados por todos os quartos. Tumulto de vozes. Um copo que se estilhaça, seguido pela ruidosa chacota dos outros amigos. E, talvez o mais desagradável, um sambinha good vibes embalando o encontro.

E me desanimando aqui embaixo. O que há de errado com essa juventude, escutando essas músicas modernas demais para serem boas? Se vão me deixar acordado madrugada adentro, que ao menos ouçam rock.

Mas os jovens não escutam mais rock.

É comum que uma das moças fique depois da festa. Para "ajudá-lo com a bagunça", já ouvi algumas dizendo. Por que você escolhe sempre as com vozes mais desagradáveis?

Aliás, Pé de Chumbo, foi assim que descobri seu nome. André. "Ai André", suplicam as garotas. A voz de quem requisita sua ajuda para tirar uma farpa do dedo.

Você fez por merecer meu ódio, Pé de Chumbo.

Ao menos, é o que eu pensava. Que odiava você. Foi assim até aquela fatídica manhã. Você se levantou mais cedo do que o comum, agitado. Não era sua movimentação habitual. Tropeçava, deixava coisas para trás. Nem fez sua vitamina.

Saiu batendo a porta. A última vez que ouvi algo seu.

Já perguntei para os porteiros se você deixou algum aviso. Eles não sabem de nada. O síndico também não. Tampouco a faxineira do prédio. Ninguém.

Disseram para eu não me preocupar. Que você provavelmente só esteja viajando. Visitando algum amigo. "Jovens são assim", disseram.

Não sei. Estou preocupado.

É incrível, mas sinto falta dos seus pés passeando pelo meu teto. As coisas por aqui eram melhores com você aí em cima. Apesar do barulho. Eu admito: sem você, esse apartamento ficou silencioso demais. Solitário demais.

Volta, Pé de Chumbo.

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Luís Fernando Amâncio nasceu em Três Corações, em 1986. Mudou-se para a capital mineira em 2005, onde se graduou e fez mestrado em História, pela UFMG. Dedica-se à literatura desde a infância, mas começou a escrever com mais frequência ao publicar "Contos de autoajuda para pessoas excessivamente otimistas" (Ed. LiteraCidade, 2014). Em 2021, lançou seu segundo livro, "O voo rasante do pombo sem asas" (Isadora Books). É colunista do site Digestivo Cultural desde 2015. Luís Fernando se consolida como um expoente do cotidianismo – estilo literário que o autor cunhou para si mesmo, já que nenhum crítico se prontificou a analisar sua obra. Ao narrar eventos plausíveis, Amâncio nos convida a observar a vida ao nosso redor. Sem filtros, floreios ou fantasias. Cenas brutas e fundamentais, que nos lembram daquilo que estamos ocupados demais para apreciar.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Estilhaços de Luís Fernando Amâncio

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