Rafael Zoehler - As fronteiras de Oline
O romance de estreia de Rafael Zoehler me lembra Eugène Ionesco (1909-1994) e o seu teatro do absurdo, assim como um conselho atribuído ao famoso dramaturgo para escrever bem: “Devemos escrever para nós mesmos, é assim que poderemos chegar aos outros.” De fato, Rafael adota um universo ficional muito próprio e sem preocupações em seguir tendências literárias atuais; um estilo que ele já tinha esboçado inicialmente na coletânea de contos Testado em animais, inspirado no realismo fantástico. Contudo, agora no formato romance, ele encontra espaço para aprofundar questões existenciais mais complexas, demonstrando a sua maturidade como autor.
O Senhor Oline é um homem obcecado que segue à risca os manuais e procedimentos de sua profissão, Guarda da Fronteira, assim como o pai que exerceu essa atividade por toda a vida, orgulha-se do histórico impecável no cumprimento do dever, expresso no uniforme e bigode impecáveis. Ele é o encarregado da fronteira entre a Sérvia e o Cazaquistão, países que na verdade não fazem fronteira na nosso geopolítica atual, mas aqui a geografia de "linhas bem desenhadas dos mapas de papel" não corresponde à realidade e os países tendem a se misturar ou se afastar de um momento para o outro, se as fronteiras não forem muito bem vigiadas.
"O limite entre a Sérvia e o Cazaquistão era teimoso como qualquer outro limite imaginado pelo homem. O Senhor Oline sabia que a vida no chão de terra, como costumava ser em lugares assim, era muito diferente das linhas bem desenhadas dos mapas de papel, de modo que um dia o vento arrastava o Cazaquistão mais para cá e no outro empurrava a Sérvia mais para lá. Alguém precisava separar os dois países caso se misturassem demais. Era preciso deixar claro que lá era lá e que ali era ali. Esse alguém era o Senhor Oline. / Humano reto, havia herdado apenas duas coisas do pai: o ofício como Guarda da Fronteira; e o bigode. E que impecável era o bigode, rivalizando apenas com o uniforme no quesito perfeição. Nunca se consideraria à altura do posto se algo acontecesse com sua aparência. E justamente por isso nada acontecia." (p. 13)
A rotina solitária na fronteira segue sem alterações até que os dias do Senhor Oline ficam mais longos e amargos ao perder a companhia eventual do Viajante, única pessoa que poderia ser considerada como um amigo, quando o mesmo decide permanecer em casa para descansar depois de ter visitado todos os lugares do mundo mais de uma vez. Perturbado pela ausência da sua única companhia, o Senhor Oline pratica um ato impensado: arremessa uma pedra do Cazaquistão para dentro da Sérvia. Deste ponto em diante, apesar da pouca influência do fato na ordem geográfica, tem início a busca da pedra fugitiva para restabelecer a reputação do Guarda de Fronteira.
"O Senhor Oline era um excelente nadador teórico. Havia tirado nota máxima em todas as provas escritas de natação exigidas durante o Curso de Formação de Guardas da Fronteira. Sabia qual o ângulo perfeito para inclinar os pés durante o nado de peito, a quantidade de braçadas entre cada puxada de ar do estilo livre e até as raças mais indicadas para o estilo cachorrinho. Porém, por motivos geográficos óbvios, que derivavam do fato da fronteira da Sérvia com o Cazaquistão não possuir um corpo de água por perto, e também por sua cabana não ser equipada com piscina, jamais havia posto em prática seu conhecimento. Foi combinado entre ele e a Pescadora, para a infelicidade da mesma, que ela o ensinaria apenas o suficiente para que ele sumisse. O Senhor Oline concordou, era do seu interesse colocar-se em marcha. Era do interesse da Pescadora que ele fosse e não morresse afogado, se isso acontecesse, afinal, voltaria boiando para a ilha. Minha ilha não é cemitério, ela disse por fim." (p. 61)
Depois de procurar a pedra em todo o território da Sérvia, o Senhor Oline decide continuar em linha reta até o próximo país em uma verdadeira epopeia sem descanso para dar continuidade à sua missão. Nesta busca longa e improvável, ele conhece pessoas e países que mudam de lugar todo o tempo até finalmente encontrar a pedra em um desfecho surpreendente. Um livro recomendado que mostra como nos tornamos prisioneiros de nossa própria solidão em um mundo de fronteiras e limitações que nem sempre fazem sentido diante da irrelevância da nossa existência.
"E assim o Senhor Oline chegou ao Japão. Bem na época do Tanabata, o Festival das Estrelas, que acontecia no sétimo dia do sétimo mês do ano. Durante o festival, o povo japonês escrevia seus desejos em pequenas tiras de papel colorido e pendurava em bambus para que a princesa Orihime, a princesa da lenda do Tanabata, os realizasse. Os bambus se enchiam de papel na mesma medida em que a ilha se enchia de festa. E uma das tiras foi eventualmente parar nas mãos do Senhor Oline. Ele observou aquele papel colorido e pensou muito no que escrever ali. Seu primeiro pensamento era a pedra, óbvio. Mas outros desejos também se embaralharam em sua mente. Palavras que gostaria de de ter dito, perguntas que gostaria de ter perguntado, peixes que escaparam dos anzóis. Pendurou o papel em branco no bambu, sem rabisco de sua autoria, e seguiu." (p. 96)
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