Rafael Gallo - Cavalos no escuro

Literatura brasileira contemporânea
Rafael Gallo - Cavalos no escuro - Editora Record - 208 Páginas - Lançamento: 2024.

Rafael Gallo já é um nome consolidado no cenário da literatura brasileira contemporânea, tendo sido revelado pelo prêmio Sesc de Literatura em 2012 com "Réveillon e outros dias" na categoria contos. Em 2016 levou o Prêmio São Paulo de Literatura com o romance "Rebentar" e em 2022 o prestigiado Prêmio José Saramago com o romance "Dor fantasma". Agora, Rafael retorna à categoria contos neste mais recente lançamento pela Editora Record, uma obra que confirma a habilidade do autor em construir personagens complexos convivendo com os extremos da condição humana – para o bem ou para o mal –, quando submetidos a situações insólitas. Um exercício para o qual, diga-se de passagem, a ficção encontra cada vez mais dificuldade para superar a realidade.

"Cavalos no escuro", que abre esta coletânea e empresta o título ao livro, é um bom exemplo do tratamento ficcional sem uma definição clara de tempo ou espaço, priorizando o perfil psicológico de três personagens: o dono da fazenda, Fortunato, assim como o caseiro Pedro e sua esposa Joana, que compartilham uma relação de submissão ao aceitarem o poder praticamente divino exercido pelo fazendeiro, principalmente por parte de Pedro, que ignora inicialmente os avisos da esposa. Neste cenário isolado, as noites passam a ser assombradas pela movimentação pouco usual dos cavalos no estábulo, noites que se transformam em um suplício para Pedro, tomado por pesadelos e o incômodo sentimento de desconfiança: "Quando a mulher não se dispõe ao marido por tanto tempo, alguma desordem há. E se há desordem, precisa ser corrigida."

"Hoje há de ver também com os olhos, há de ver com os olhos que Deus lhe deu. A enxada impotente tombada ao solo, que Pedro não ergue. Se algum cavalo for mesmo morrer do coração, que seja; antes o bicho do que eu, que já estou perto disso, ele pensa. Um sacrilégio tal ideia, mas Deus e seu Fortunato o perdoariam, se fosse preciso; confia na misericórdia de ambos. O mundo só não pode continuar assim, tudo fora do lugar: uma esposa que recusa os toques do marido; um homem sem possibilidade de questionar sua mulher; os bichos a armarem escândalos; o dono da propriedade a trazer dúvidas à cabeça de seu serviçal, em vez de certezas. / Quando a escuridão da noite domina a fazenda e o primeiro relincho dá início ao alvoroço, Pedro sai do casebre. Está vestido, pronto à emboscada. Contém os passos para chegar sem ser notado. Esgueira-se pelo mato, as folhas pisadas a sussurrarem alertas contra o avanço. [...]" (pp. 25-6) - Trecho do conto Cavalos no escuro

Em "Anjo caído", Vilma é uma mãe dedicada que se esforça para atender todas as vontades do filho Davi. O problema é que Davi sofre de um transtorno de compulsão alimentar e, neste caso, se faz necessário impor limites para interromper o processo acelerado de obesidade que já ameaça a vida do rapaz. Com a voz narrativa se alternando entre mãe e filho, pecebemos como a relação de dependência emocional entre eles conduz a história para uma tragédia anunciada. Já em "Fábrica de núvens", Vitória é uma protagonista que ainda não tem idade para entender a sordidez dos atos do pai na vida e na política, ações que contrariam muito a sua postura na igreja. Educada em uma realidade paralela de contos de fadas, a menina escuta as conversas dos adultos e interpreta os fatos que desmoronam a estrutura familiar de uma forma muito peculiar.

"A doutora Alexandra precisava ser mais compreensiva. Mesmo quando conto dos nossos avanços, ela reage com hostilidade. 'Vilma, você precisa se ater à dieta. Não adianta oferecer controle e descontrole ao mesmo tempo. Pelo que a Daniela estimou, o Davi deve estar com mais de 250 quilos.' Respondo ser esse, justamente, o motivo de não poder comer tão pouco. Ela inverte a relação: uma pessoa desse tamanho tem mais reserva de calorias, em vez de maior necessidade delas. Deve ser procedimento padrão de psicoterapia, colocar tudo ao contrário. Quando procuro retomar as origens da personalidade do Davi, a doutora me instrui a apontar para as finalidades dos comportamentos dele: 'Não se pergunte por que ele age de certa maneira; pergunte-se para quê.' Fala de reforçadores positivos e negativos, tudo fica de ponta-cabeça: a consequência de um sentimento seria, na verdade, o que o causa. Por levá-lo a conseguir o que deseja, ele manifesta a carência. Não pode  estar certa, essa lógica." (p. 65) - Trecho do conto Anjo caído

No conto "Diário de transbordo #99", o autor desenvolve um tema muito atual sem receio de parecer politicamente incorreto. Valentina, é uma influenciadora digital em busca de likes e compartilha com seus seguidores a escolha de um novo nome para combinar com o seu processo de transição de gênero. No entanto, ela (ou ele) não se realiza como esperava no novo gênero masculino e decide fazer uma "retransição" ou "destransição" para retornar ao gênero feminino, uma confusão que reflete bem a nossa época de identidades fluidas. Em "O jardim das esculturas", uma história de amor é interrompida pela morte e a literatura se torna uma forma de, para quem fica, "preservar alguma inconformidade" ou "resguardar a pessoa amada do esquecimento".

"A cada vez que minha mão traça seu nome, penso ser o único motivo pelo qual desejo a escrita. Todas as outras palavras apenas para orbitá-lo. Nina. No mais, desconheço ao certo meus motivos. O que é isto, a se espalhar diante dos meus olhos e dos meus dedos? Uma carta, que jamais chegará à destinatária, mas que ainda assim preciso entregar? Tentativa de recuperar, ao menos, uma capacidade vital minha? Algo que me define e no qual eu me busco de volta. Mero disparate? Tudo é igualmente absurdo. Mesmo os livros que escrevi e publiquei, eles me parecem, agora, o delírio de outra pessoa. Alguém que acreditava na serventia de se inventar histórias, de ordená-las na forma de texto. Ao menos, isso eu sei: o que escrevo aqui não tem nada de literário. Brota de outra parte de mim; uma parte que não existia até eu te perder. E nada disso caberia em um livro, como se fosse também uma estátua erigida, um artefato. Algo esculpido e deixado à mostra dos outros. Não." (pp. 191-2) - Trecho do conto O jardim das esculturas

Literatura brasileira contemporânea

Sobre o autor: Rafael Gallo nasceu em São Paulo em 1981. Publicou, pela Editora Record, o romance "Rebentar" (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016) e o livro de contos "Réveillon e outros dias" (vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2012). É também autor do romance "Dor fantasma" (vencedor do Prêmio José Saramago 2022) e tem ainda diversos textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Cavalos no escuro de Rafael Gallo

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