Ana Raja - As dores delas
O romance de estreia de Ana Raja tem como base um homem que mantém simultaneamente duas famílias; situação decorrente de uma sociedade na qual o machismo estrutural ainda é muito presente, perpetuando a desigualdade de gênero. A autora conduz a narrativa do ponto de vista de Laura, filha da segunda e mais recente família, que é condenada à invisibilidade, apesar de desejar conviver com as irmãs. Na outra ponta dessa chamada vida dupla, o homem, não nomeado, preserva uma relação familiar paralela com quatro filhas: Ana, Salete, Verônica e Sandra, cada uma descobrindo e reagindo ao seu próprio modo à situação imposta pelo pai e que, aos poucos, vai sendo descoberta por todas as personagens (cinco filhas e duas esposas).
As reflexões da narradora sobre a divisão do homem demonstram uma das questões abordadas no livro: "Um ser sobrevivendo em dois lares é metade ou inteiro? Se comporta da mesma maneira em cada casa ou assume dupla personalidade?" No entanto, o foco principal em todo o romance não é sobre as motivações que levaram o pai a manter esta situação e sim sobre as consequências e o sofrimento causado em cada uma das filhas, principalmente a protagonista, que carrega desde muito cedo "o peso da ausência" das irmãs. Em outra passagem, Laura confessa depois de muitos anos o sentimento provocado pelo afastamento: "O que me separa de Ana, Salete, Verônica e Sandra é o apanhado das dores e o exílio de um tempo não vivido."
"Por sermos a família mais recente, eu considerava o amor em nossa casa maior, que ele nos amava mais forte. Com o tempo, passei a entender que não era isso... amar mais os de uma casa ou da outra; amar mais uma casa do que a outra. Não havia diferença. O domínio, a posse era exatamente a mesma. A ânsia incontida de despertar admiração se conectava com a permissão herdada pelos homens desde sempre. [...] Adulta, durante uma sessão com a terapeuta, ela sugeriu que, na nossa casa, ele poderia ser o pai e o marido que sempre quis ser. Neguei essa possibilidade, pois não fazia sentido. Homem tem essa coisa de dono; pai, na essência da palavra, é amor. É esquisito dividir uma pessoa, dizer que de um lado ela age como homem e do outro como pai. [...] Eu gostava mais do lado pai... Do meu pai. [...] Em algum momento, eu desejei fazer parte daquela família, mas compreendi: diante de irmãs tão perfeitas, não haveria de dar certo. A minha engrenagem é outra e não por sermos filhas de mães diferentes. Não, é isso! Somos filhas de pai compartilhado. Ele era inverso e avesso em cada casa e isso nos fez desiguais." (pp. 14-5)
Em uma boa imagem poética da autora, as duas mulheres se chamam Maria e aquela da família mais recente herdou um histórico de abuso doméstico que sempre foi acobertado pela própria mãe, explicando em parte a sua submissão à vida paralela imposta pelo homem. Já no núcleo da primeira família, é Ana quem aceita melhor a existência da irmã nascida da outra relação e mantém contato com ela, assim como Salete; Por outro lado,Verônica e Sandra jamais aceitaram a possibilidade de manter uma ligação entre as duas famílias, uma ponte que nunca foi construída como Laura afirma: "A ponte meu pai construiu para ele. Para nós, construiu a distância."
"Minha mãe usou esse vestido azul na infância. Ela o experimentou pela primeira vez quando o pai se deitou sobre o seu corpo de doze anos. Sem entender o que acontecia, carente de armas para lutar, ela desmaiou diante do céu cerúleo. O sol mais forte do dia provocou uma febre em seu corpo estendido no chão de terra vermelha. Não pôde gritar, a mão do pai tapava a sua boca com fervor, o sangue que brotava entre as pernas adquiriu uma forma de castigo para ela. Não havia outra explicação. Naquele momento, o raciocínio lhe escapara. O corpo tentou correr dali encharcado de suor, sujo. Um cheiro desconhecido a fez sentir nojo, achou que ia morrer, quis morrer. [...] O pai da minha mãe era colhedor de café. Ela estava encarregada de preparar e levar o almoço para ele na plantação fazia poucos dias. Duas de suas irmãs já haviam transitado por essa incumbência e, pelo visto, não tinha dado certo. Minha mãe ouviu uma conversa delas atrás da porta, contando que o pai se transformara em monstro. Na hora, não entendeu e nem perguntou por que falavam aquilo do pai tão querido, até o dia em que o monstro se apresentou. Entre desmaios e dor, ela se tornou invisível pela primeira vez." (p. 20)
Desde criança Laura foi informada da existência das irmãs que viviam no lar mais antigo, acostumando-se à situação, contudo a recíproca nunca ocorreu, fazendo com que as irmãs descobrissem sobre ela de forma não controlada o que sempre prejudicou a aproximação. E, no final, apenas ao pai era permitido cruzar a ponte entre os dois mundos criados por ele: "Em cada casa meu pai era um; nós, suas vítimas. Tenho que reconhecer o talento dele para fabular realidades. Além disso, ele vivia da certeza de que fazia o melhor para suas famílias." Ana Raja nos apresenta um tema que, apesar de ainda ser usual em nossa sociedade, é desenvolvido aqui de forma profunda e madura, um romance de estreia que vale a pena ser conhecido e divulgado.
"Me dei conta de que vivia à margem da minha própria saga, precisava me encaixar, desbravar esse universo desconhecido que me convidava para entrar. Eu gostaria de ter recebido o convite, mas a verdade é que ele nunca chegou, e me deparei com o engano. Revirei o significado dessa palavra e me vi enterrada nele. Imaginei que pudesse aparecer sem avisar, eufórica, e comunicar os nossos laços sanguíneos, daí elas me receberiam com sorrisos escandalosos, abraços acolhedores e a reciprocidade desse amor de sangue teria voz. [...] Era natural eu desejar conviver em irmandade, acenar do meu lado da ponte; estou aqui, sou Laura, a irmã de vocês. Eu queria ser descoberta por elas como as descobri. Não fazia sentido só elas existirem, mas, e se eu fosse rejeitada? Se elas escolhessem não dividir comigo os brinquedos, os segredos e os doces? Se me achassem esquisita? Se o meu jeito de falar não combinasse com as frases claras que pronunciavam?" (pp. 103-4)
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar As dores delas de Ana Raja
Comentários