Milo Noronha Utsch - Corpo estranho
O romance de estreia de Milo Noronha Utsch tem um estilo próprio com base em influências da ficção especulativa, literatura fantástica, terror ou suspense, porém não se enquadrando em nenhuma dessas categorias. O protagonista, Élio, é um botânico que retorna depois de alguns anos à sua cidade natal, São Gonçalo do Rio Preto, no vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, contratado por uma farmacêutica multinacional para desenvolver um medicamento com base em uma planta tóxica da região chamada Ternura Vermelha. Élio relembra passagens de sua infância e adolescência que preferia esquecer quando reencontra Dalton, que trabalha como caseiro na construção que funciona como base de pesquisa para a equipe enviada, formada pelo próprio Élio, Samuel, Ítalo e Raquel.
Uma das funções do time de pesquisadores, além de desenvolver um ansiolítico utilizando a planta do Cerrado mineiro, é descobrir o que aconteceu com a equipe anterior, desaparecida sem deixar vestígios. A narrativa conduzida em primeira pessoa por Élio, alterna os eventos do presente com as memórias de quando era uma criança trans no interior, uma menina que não se enquadrava nos padrões locais, incompreendida pelos pais e perseguida pelos colegas ao longo do seu complexo processo de transição de gênero, exceto por Dalton que ficou na cidade.
"Antes de descer do carro, minha pele já estava coberta por uma pátina vermelha. Nunca me ocorreu que a poeira seria a primeira a me receber. Me imaginei voltando para casa várias vezes ao longo dos anos, minhas pernas tocando a água âmbar do rio e ela se abrindo em volta de mim. Um organismo que rejeita um corpo estranho. Não me lembrava de que nada entra na cidade sem antes ser batizado pela terra. Abri a porta do carro e sacudi o pó das minhas roupas. Caminhei com as pernas doces para o porta-malas, ainda amarrotado das horas dentro do carro. A viagem de Belo Horizonte até Rio Preto sempre pega as pessoas de surpresa, apesar de que a estrada estava muito menos esburacada do que me lembrava. Senti meu estômago embrulhar quando vi a beira da estrada salpicada de pequenas cruzes, sinal de que nos aproximávamos da cidade. Da última vez que tinha feito esse trajeto, cada cruz ainda servia como seu próprio radar, precisávamos reduzir para dar tempo de contar a história de cada acidente. Desta vez, nosso carro acelerou pelas cruzes sem hesitação, seja pelos mortos, seja pelas multas." (p. 9)
A perigosa planta Ternura Vermelha, imaginada pelo autor, é um personagem à parte na história. Na verdade, a planta é uma espécie de parasita que se reproduz por meio de esporos transmitidos pelo ar, contaminando as pessoas que se aproximam e propiciando o crescimento de uma nova planta que passará a se alimentar do organismo da vítima. Ao longo da narrativa, sonho e realidade se confundem enquanto Élio não consegue separar os limites entre passado e presente na sua vida pessoal, assim como manter um comportamento ético e a própria segurança como pesquisador ao ser pressionado pela estrutura de poder da farmacêutica multinacional.
"Alguns dos ramos saíam de dentro do corpo e se esparramavam pela árvore, se fixando na superfície do tronco e dos galhos com raízes aéreas. Me endireitei, nivelando meu rosto com seu olhar opaco. Uma das raízes sumia debaixo do que restava de tecido no ombro esquerdo do corpo. Tentei puxar de leve a raiz, mas ela estava firme e todo o braço balançou de leve com o movimento. A planta já tinha tido tempo demais para se entranhar na carne, eu não ia conseguir extrair a amostra sem usar o alicate. Cortei parte do que restava da jaqueta para facilitar a remoção e, apesar dos hematomas, percebi as linhas sólidas de uma tatuagem. Um besouro preto de uns cinco ou seis centímetros. Senti minha cabeça pender pra frente, se apoiando no tronco do araticum ao lado de Teodora." (p. 97)
Milo Noronha Utsch nos apresenta um romance original que requer a participação do leitor para interpretar as diferentes possibilidades de um "corpo estranho", que tanto pode ser uma pessoa inadaptada na sociedade quanto uma desconhecida planta tóxica que cresce em um hospedeiro. Bons diálogos e imagens fortes conduzem o leitor nessa inusitada aventura que nos faz pensar sobre os limites do corpo e da memória.
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