Luís Pimentel - A viagem e outros contos
Ao ler os contos desta mais recente coletânea de Luís Pimentel, ficamos com a impressão de reconhecer os personagens em cenas típicas do cotidiano das nossas grandes cidades, conversando no botequim da esquina, indo para o trabalho no transporte popular ou simplesmente caminhando pelas ruas, encontramos essa gente simples que sobrevive, apesar de tudo. É quando a mágica da literatura nos mostra que, quanto mais local o foco da narrativa, mais universal se torna a representação humana. Um exercício que é independente da origem ou época da narrativa. Exemplo disso é a descrição do amanhecer no bairro boêmio da Lapa no Rio de Janeiro e a chegada do compositor depois de uma noite de trabalho, uma pintura na abertura do conto "Eu sou assim" em memória de Wilson Batista (1913-1968): "A dançarina que perdeu um pé de sapato usa um batom bem vagabundo e reclama muito da vida."
A música popular se torna um dos personagens do autor como em "Ainda é cedo, amor" que tem a canção de mestre Cartola (1908-1980), "O mundo é um moinho" protagonizando o conto. Outro compositor genial carioca, Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1910-1986) é retratado no ótimo "Fores em vida", a composição que empresta o título ao conto e que, segundo um admirador declara na mesa de bar é uma obra-prima, comentário respondido da seguinte forma pelo sambista: "Bobagem. Obra-prima é aquela morena ali." E a narrativa segue: "A obra-prima das madrugadas na Rua Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura."
"Depois disso, minha irmã ainda passou várias vezes à minha frente, pegando cerveja para o sujeito de bigodinho, acendendo cigarros para ele e para ela, e toda vez que voltava para a mesa o tarado levantava a saia minúscula que ela usava e passava a mão na bunda de Dalva. Eu espichava os olhos para ver se reconhecia também a bunda de minha irmã, a mesma que eu ficava olhando pelo buraco da fechadura enquanto ela tomava banho. Dalva dava beijinhos no nariz e na testa do magricela, evitando beijar na boca. Puta não gosta de beijar na boca e o cara esquisito ainda tinha uns dentes todo arrebentados, possivelmente pelo efeito da nicotina. Se eu fosse ela, também não ia querer dar beijo na boca daquele sujeito. Minha irmã estava bonita e toda senhora de si. Para lá e para cá, ia e voltava, sem me reconhecer na quase penumbra." (p. 62) - Trecho do conto "Refresco de manga"
Luís Pimentel sabe, como poucos autores na literatura contemporânea, trabalhar com a emoção sem cair na armadilha do lugar comum e sempre surpreende o leitor com os seus desfechos imprevisíveis, fórmula certeira para uma boa narrativa curta. Exemplo disso é "A viagem", narrado em terceira pessoa e com diálogos precisos entre pai e filho, inseridos no texto sem pontuação. A avaliação do saudoso Ziraldo resume bem: "Seu conto 'A viagem', presente neste voluma, é, para mim — que conheço bastante volumosamente os contos brasileiros —, um dos cem melhores contos já escritos entre nós. Poucas vezes li conto mais comovente e sempre achei que o conto bom é aquele que comove o leitor. Qualquer tipo de comoção. A deste conto é dilacerante."
"Amanhece na cidade e a luz no bairro da Lapa é cinza. Há um brilho, mas ainda é noite, onde homens e ratos madrugam. Um pombo bêbado se espanta e a confusão de cheiros lembra corpos em êxtases. Papéis em chamas, urina ainda quente, meninos e meninas perdidos dos pais, das mães, dos filhos e de todos os sonhos. Catadores de papel e papelão pegam carona nos sons de trombone que ainda ecoam. A dançarina que perdeu um pé de sapato usa um batom bem vagabundo e reclama muito da vida. O tempo brilha no gumex dos homens e no laquê das mulheres no bairro boêmio. Tem uns arcos enormes de paredes bem largas, pelos ombros dessas paredes escorrega o bonde urbano, de um lado para o outro. O compositor de terno branco, camisa de seda pura, sapato cara de gato, cachecol vermelho derramado pelo peito, lapela larga levantada e navalha no bolso pula do bonde e chuta uma casca de fruta seca atirada ao chão. Com o dedo indicador, ajeita os fios na sobrancelha." (p. 73) - Trecho do conto "Eu sou assim", dedicado à memória do compositor Wilson Batista (1913-1968)
Nessa triste época em que vivemos — de declínio da música dita popular e da cultura em geral — Luís Pimentel nos apresenta uma coleção de contos com sabor de samba-canção, histórias que já deixam saudades, como em "Mania de Outono" que nos remete às nossas próprias sensações e memórias: "Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio." Um livro muito recomendado.
"Tem gente que gosta de ganhar muito dinheiro, de comprar fazendas cheias de bois, prédios inteiros, de viajar pelo mundo afora. Eu não. Gosto mesmo é de ficar parado aqui, na porta da loja de discos, escutando música e dançando na calçada suja. Só para dar uma freada na correria dos desavisados que passam para lá e para cá. Esse é o meu único programa na vida. Um ou outro até para e fica assistindo à minha dança, depois dá um dinheirinho. Mas dá porque quer, eu não peço. Não é para ganhar dinheiro que exerço a minha arte, é só para me divertir. Tem gente até que acha que sou um sujeito engraçado, cai na gargalhada, aplaude e balança a cabeça em sinal de aprovação. Deve ser por falta do que fazer. Mas têm uns que pensam que eu sou é maluco mesmo, olham enviesado com caras de poucos amigos, puxam a mulher pelo braço, afastam as crianças. Não faz mal, Deus está vendo." (p. 80) - Trecho do conto "Tudo na vida passa"
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