Henrique Lamas - Em chamas
O livro de estreia de Henrique Lamas é uma coletânea de contos que surpreendem devido à liberdade criativa do autor ao compor uma mistura de elementos narrativos a partir de diferentes épocas, permitindo-se utilizar personagens e eventos históricos reais em confronto com outros imaginários, influenciado pela literatura do absurdo ou surrealista, um estilo no qual sonho e realidade se confundem. Por exemplo, no conto de abertura, "Nos trilhos do trem", a guerra de Canudos liderada por Antônio Conselheiro e imortalizada pela obra "Os Sertões" de Euclides da Cunha, serve de argumento quando a protagonista em 1896 tenta avisar sobre o envio do exército para vencer a resistência da comunidade sertaneja, finalmente massacrada.
Já no conto de maior extensão e que empresta o título ao livro, "Em chamas", o incêndio que destruiu a sede do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista em 2018, serve de inspiração para uma história que é também sobre a memória, ou mais especificamente a perda dela, valorizada ainda por um narrador muito especial, ninguém menos que o Vento, um personagem que obviamente "sabe tudo que acontece e que já aconteceu". Em "Entre macacos e dragões", uma ligação improvável entre um protagonista chamado Saci Pererê, que é apaixonado pela cultura japonesa, especialmente a culinária, e a investigação sobre o desaparecimento de um instrumento feito de bambu para trazer a chuva, não tem limite mesmo a imaginação de Henrique Lamas.
"E a sua primeira lembrança acaba quando o horizonte se pinta de laranja e o mundo parece virar um forno quente, muito quente: pelo palco andam algumas figuras, todas com tochas nas mãos, circulando o grande fogo que nasce de uma pilha de madeira em seu centro. Logo estão as figuras pulando sobre ele, voando penduradas em pedaços de metal, dançando em órbitas ao seu redor. Nem quando mais velho, como um pequeno menino com as costas machucadas, ou até mesmo já em fases mais avançadas de sua tímida juventude, quem sabe até quando fosse, ele mesmo, um pai, Ulisses da Silva conseguiria pôr em palavras o que sentiu naquele início de tudo, logo no seu primeiro olhar sobre a vida, quando viu o fogo pela primeira vez. Através das chamas, os olhos do bebê encararam reflexos estranhos: como se jogadas aos cantos pela força do Vento, as labaredas do fogo abriram-se e de seu interior mostrou-se uma sombra. Era que nem aquelas pessoas que estavam ao seu redor no circo, tinha uma bola de cabeça, braços, pernas e um tronco para grudar tudo, à diferença de que dela luz alguma refletia, nada podia se ver, era apenas um puro breu, pois essa é a única tinta com a qual as chamas sabem pintar. Ela rescindia em pé, lá no fundo do horizonte, e parecia olhar para ele." (p. 84) - Trecho do conto "Em chamas"
No ótimo "Velas para dona Vera", a protagonista é uma menina de quatro anos que tenta encontrar uma forma de curar a doença da avó, auxiliada por Amir Guanabara, um gênio da lâmpada muito especial, que reside em uma panela de barro no Rio de Janeiro e utiliza uma canga de praia como tapete. No conto de encerramento, "Os cavaleiros da Távola Redonda", o desaparecimento do mago Merlin, faz com que o rei venha a pedir ajuda e oferecer uma oportunidade de libertação aos cavaleiros: Artur, Lancelot, Percival, Galahad e Tristan, aprisionados por suspeita do roubo do Santo Graal. Tudo se complica quando um falso Merlin é capturado pela feiticeira Morgana.
"O dia seguinte amanheceu diferente, porque a minha mãe não me acordou. Quando abri os olhos, vi que o sol já batia lá no alto do quadro da Turma da Mônica, o que só podia indicar uma coisa: já era muito tarde. Subi na escadinha, abri a porta do quarto e vi minha mãe sentada no sofá da sala, sozinha. Seus olhos estavam inchados e vermelhos. Quando cheguei perto, ela falou que era alergia, mas ela não estava nem um pouco encatarrada, nem espirrou uma vez no dia inteiro. Perguntei da vovó e ela disse que ia ficar bem, mas que o quadro — diferente daquele da Turma da Mônica — da vovó era severo e podia piorar muito rápido. / Então eu falei o que tanto guardava: que eu sabia como curá-la. Mas a mamãe não ficou nem um pouco surpresa, nem feliz. Ao invés disso, só me abraçou. É. sério, eu repeti algumas vezes. Então contei tudo, ainda no abraço: bastava dar velas para ela de presente, porque velas são símbolos de esperança, e a vovó notavelmente melhorou muito lá na praia quando comprei uma para ela, o que só podia indicar uma coisa. Comentei que a vovó sorriu, que voltou a falar alto, que a cara feia foi embora. Não disse nada sobre o gênio Guanabara: minha mãe não acreditaria." (pp. 215-6) - Trecho do conto "Velas para dona Vera"
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