Eduardo Sabino - Estados Alucinatórios

Literatura brasileira contemporânea
Eduardo Sabino - Estados Alucinatórios - Editora Caos e Letras - 204 Páginas - Projeto gráfico de Cristiano Silva - Lançamento: 2019.

"A literatura não é outra coisa além de um sonho dirigido", a epígrafe de Jorge Luis Borges nos dá uma primeira pista sobre a inspiração e as referências literárias de Eduardo Sabino nesta sua terceira antologia de contos. De fato, o jovem autor mineiro flerta com o estilo fantástico de alguns grandes escritores argentinos tais como: Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo e o próprio Borges. Contudo, as narrativas de Sabino são influenciadas também pela literatura do absurdo ou o chamado estilo surrealista dos franceses Boris Vian e André Breton, incluindo doses maciças de ironia e bom humor, tão ao gosto dos leitores brasileiros. 

Nos onze contos do livro, os personagens são descritos em situações de perturbação mental onde sonho e realidade se confundem. Vale ressaltar que o título pode ser entendido como uma referência aos estados psicológicos alterados ou também a um Estado-nação distópico. Por sinal, a história contemporânea do Brasil, assim como a de outros países tidos como "sérios", vem sendo apresentada nos noticiários como uma inesgotável fonte de matéria-prima nonsense que, em muitas ocasiões, supera a imaginação mais delirante de qualquer ficcionista.

No conto de abertura, Samuel e Samael, é abordada uma situação recorrente na literatura universal, de Johann Wolfgang von Goethe até João Guimarães Rosa, o impasse metafísico entre o bem e o mal, representado pelo diálogo entre personagem e demônio. Aqui, no entanto, ocorre uma relação diferente e mais íntima, o corpo do protagonista-narrador serve de abrigo ao mestre das trevas, como uma relação de "hospedeiro e parasita", influindo em todas as ações do narrador ao longo da vida, seja no campo pessoal ou profissional. O desgaste inevitável entre "senhorio e inquilino" atinge um ponto no qual o exorcismo é a única solução.
"Ao menos eu tinha alguém para me fazer companhia. Morávamos sós, eu e mamãe. Quando não estava na tevê, ela estava fora, nos afazeres da paróquia, ou no quarto de orações, lendo a Bíblia, rezando o terço ou entretida em algum outro de seus divertimentos sofridos de beata católica. Durante o dia, nem sinal dele. Nem uma pata ou um pedaço de rabo fora de mim. Nas madrugadas, Samael catapultava-se: relembrávamos os acontecimentos do dia e ele me dava os piores conselhos possíveis. Era boa companhia, sobretudo um inquilino divertido, mas recebia comida, água e fogo de graça. Não seria conveniente a um parasita ser amigo de seu hospedeiro?" Trecho do conto "Samuel e Samael" (p. 15)
Já em Alimentando Junior, um professor solitário encontra um filhote de crocodilo perdido e é tomado por um irresistível sentimento de paternidade. Ele acredita que poderá "desviar-lhe de sua trajetória selvagem", respeitando seus instintos, mas adaptando-os aos limites da casa. "Um desafio imenso se tratando de um réptil no topo da cadeia alimentar". Por sinal, a alimentação torna-se o principal problema quando o crocodilo atinge a maioridade e sente a necessidade de caçar para se alimentar, principalmente depois de assistir a alguns documentários na TV fechada da National Geographic sobre seus irmãos no Nilo destroçando mamíferos.
"Foi questão de semanas até o aquário ficar pequeno e Junior, desconfortável no berço. Se economizei com roupas e sapatinhos, gastei uma nota com a piscina que mandei fazer no porão. Enquanto os pedreiros trabalhavam lá embaixo, mantive Junior na banheira da suíte. Criança é um bicho curioso e fica sempre empolgada com gente nova na casa, sabe como é, daí a necessidade de montar guarda na sala que Junior tentou atravessar duas vezes andando sorrateiramente no tapete. Trancá-lo era pior: ele protestava batendo a calda, inundando o banheiro, fazendo a água escorrer embaixo da porta. Aquilo me tirou do sério. Cogitei lhe dar umas palmadas, cheguei a tirar o chinelo do pé, mas superei a irritação. Filho meu seria educado sem violência, pelo exemplo e o diálogo." Trecho do conto "Alimentando Junior" (p.37)
No conto Pessoa física, encontramos uma espécie de alegoria kafkiana sobre a perda de identidade do homem moderno que se encontra cada vez mais isolado em um mundo de corporações e boletos, a vida se transforma em um pesadelo recorrente no qual só há espaço para pessoas jurídicas: "Que mundo é este onde só os boletos têm sucessão física no tempo, só os códigos de barra se transformam, só as contas nascem, crescem e se reproduzem?" Na festa ensurdecedora, que ocorre em uma construção em formato de castelo (novamente a referência a Franz Kafka), não é permitida a entrada de pessoas físicas.
"Neste apartamento não tem ninguém. Na vizinhança e na rua, que observo da varanda, não tem ninguém, mas no salão de festas, única coisa visível no ponto mais escuro do bairro, a música não tem fim. Também a noite não termina nunca. Pelos meus cálculos, faz alguns meses que não vejo o sol. Quando sair, o filho da puta terá que fazer uma hora extra sem precedentes. Iluminando, aquecendo, esturricando a terra até pagar sua dívida conosco. / Eu pego uma cerveja e a tomo bem devagar, olhando as luzes da festa, eu bebo todas as cervejas do freezer e quando o abro novamente as cervejas estão todas lá. O mesmo vale para os ovos que frito, o arroz que cozinho, o lixo que jogo no cesto sempre vazio. É uma situação fodida: estou sempre comendo e sempre com fome, sempre bebendo e nunca embriagado, e tudo o que eu quero nesta noite interminável é ficar bêbado." Trecho do conto "Pessoa física" (p. 91)
Estados Alucinatórios marca ainda o nascimento de uma nova e corajosa editora nacional. Idealizada por Eduardo Sabino e Cristiano Silva Rato, a Caos e Letras pretende ser uma editora independente e de pequena tiragem, voltada para a literatura contemporânea brasileira nos gêneros conto, romance e poesia. Vida longa portanto para a Caos e Letras!

Sobre o autor: Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima, em Minas Gerais, no ano de 1986. É autor dos livros de contos Naufrágio entre amigos (Editora Patuá, 2016) e Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século, 2009). Trabalhou com edição e revisão de textos para revistas e jornais nas áreas de educação, comunicação e literatura. Recebeu o prêmio Brasil em Prosa 2015 pelo conto "Sombras". É editor e um dos fundadores da Caos e Letras.

Comentários

sonia disse…
Se eu tivesse meus 30 anos de idade provavelmente me apaixonaria por Eduardo Sabino. Ele atiça nossos instintos mais primitivos, como já disse um político de quem não me lembro o nome (o importante é que a frase ficou na memória, hahahaha).
sonia disse…
Preciso fazer um addendum no meu comentário. Quando disse que me apaixonaria me referi à figura dele como escritor, nunca poderia me apaixonar por quem não conheci pessoalmente.
Alexandre Kovacs disse…
Sonia, perfeitamente entendido! Abs

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