Rosângela Vieira Rocha - Nenhum espelho reflete seu rosto

Literatura brasileira contemporâneaRosângela Vieira Rocha - Nenhum espelho reflete seu rosto - Editora Arribaçã - 268 Páginas - Projeto gráfico de Fábio Oliveira - Capa de Luiz Prates -  Prefácio de Junia de Vilhena - Lançamento: 2019.

Helen é uma mulher solteira de quarenta anos, independente financeiramente e proprietária de uma pequena joalheria onde se dedica à criação de peças exclusivas. Ela conhece Ivan Hernández, um argentino que mora em Buenos Aires, por meio das redes sociais e a amizade virtual acaba evoluindo para um relacionamento abusivo com requintes de crueldade, um tema muito atual e cada vez mais comum em um mundo conectado e globalizado, no qual as pessoas se tornam cada vez mais solitárias.

Por meio de uma prosa elegante e um ponto de vista essencialmente feminino, a autora descreve em detalhes como a protagonista é envolvida por uma rede de ações premeditadas que evidenciam um tipo de sociopatia conhecida como "narcisismo perverso". Pessoas com este tipo de desvio de comportamento não conseguem se colocar no lugar do outro, mas são extremamente hábeis em fingir um interesse genuíno ao identificar as carências e desejos do parceiro, com a única finalidade de seduzir e dominar. Na verdade, a relação tem caracterísitcas de um golpe financeiro, como tantos outros na internet, mas envolve não apenas dinheiro, os narcisistas são como vampiros emocionais, desejam tomar os sentimentos e as emoções da vítima.

O recurso narrativo utilizado pela autora foi uma série de e-mails escritos por Helen com a finalidade de ajudar um psiquiatra no tratamento de uma paciente internada em estado grave de depressão, vítima do mesmo psicopata que a assediou no passado. As memórias da protagonista são intercaladas por momentos no presente, onde ela, já recuperada, trabalha no lançamento de uma coleção de joias. Por sinal, o livro demonstra uma extensa pesquisa sobre lapidação de pedras preciosas, tipos de gemas, processos de fabricação e design.
"Havia algo misterioso em relação ao trabalho e à situação financeira de Ivan. Ele não se alongava em nenhum desses assuntos. Respondia com cortesia, mas sem precisão, de maneira lacônica e com uma leve pitada de agressividade, como se sinalizasse que me considerava inoportuna, deixando entrever, nas entrelinhas, que eu o estava submetendo a um interrogatório. Nesses momentos negaceava, escapulia e eu acabava me calando. / Deveria ter levado esses alertas interiores a sério, mas não o fiz. Sem contato pessoal é difícil, pois os diálogos são invariavelmente incompletos, ainda mais quando não sabemos quase nada sobre o outro." (p. 63)
O poder de controle de Ivan sobre Helen demonstra como o nível de violência psicológica vai aumentando gradativamente neste tipo de relacionamento, atingindo um poder de destruição que pode exceder até mesmo os danos da agressão física, que não chega nunca a ocorrer no livro. O "narcisismo perverso" não é uma prerrogativa de um gênero sobre o outro, mas na nossa cultura machista é obviamente bem mais comum encontrar homens dominadores e narcisistas que atuam como verdadeiros predadores no mundo virtual ou real.
"Ao que parece, Ivan não trabalhava. O seu tempo era investido em mim, em ouvir as minhas histórias, até mesmo as desinteressantes, do cotidiano. Ele colecionava os meus relatos de maneira tão obsessiva que chegava a me impressionar. Demonstrava ter muito boa memória. Sentia-me constantemente em falta, ora com ele, ora com a joalheria. Sua permanente comunicação e atenções exageradas às vezes me assustavam um pouco, mas creio que ele acabava percebendo e recuava, posicionando-se alguns metros atrás, pelo menos durante algumas horas ou alguns dias. Eu vivia em constante paradoxo, encantada e ao mesmo tempo meio sufocada pela voracidade de Ivan." (p.85)
O prefácio da psicanalista Junia de Vilhena destaca muito bem a questão da dupla vitimização da mulher, tão bem descrita no livro: "vista eternamente como frágil, indefesa e capturada. Ser vítima torna-se quase uma condição natural, já que a mulher é universalmente vitimada pela opressão social. Isto termina por desqualificá-la, reduzindo-a a um estado de passividade absoluta, já que suas atitudes são apenas reativas, enquanto o homem que agride é dotado de vontade, intencionalidade, livre arbítrio."
"Aprendi que narcisismo pode não se referir apenas a pessoas vaidosas, egoístas, individualistas, que se deleitam com suas imagens no espelho. É um transtorno espectral, existe num contínuo que vai de alguns traços até à desordem narcisista da personalidade em sua extensão completa. No extremo inferior do espectro, a pessoa está bem, pois o narcisismo é necessário, para que se possa ter autoestima e enfrentar o mundo. Contudo, à medida que vai avançando no espectro, a partir de determinado ponto torna-se tóxico, impedindo que a pessoa veja a si mesma como é realmente e cegando-a para os outros." (p. 232)
Sobre a autora: Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG, e mudou-se para Brasília em 1968. Jornalista, escritora e professora aposentada do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB, é advogada e Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP. Tem doze livros publicados, para adultos e crianças. Véspera de Lua, Editora da UFMG, (romance), 1990, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG – 1988; Rio das Pedras, Secretaria de Estado de Cultura, 2002, novela vencedora da Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, Menção Especial no Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores, além de ter sido classificada entre os dez finalistas da 4ª. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira; Pupilas Ovais, (contos), LGE Editora, 2005, selecionado para obter o apoio do FAC/DF; A festa de Tati (infantil), Franco Editora, 2008; Fome de Rosas (romance), 2009, FAC/Nossa Cidade, Dias de Santos e Heróis (infantil), Editora Prumo, 2009, Três contra um (infantil), Franco Editora, 2011, Nem tudo foi carnaval, (juvenil), Editora RHJ, 2012; Janaína, a bailarina (infantil), Franco Editora, 2012; O macaco Felício (infantil), Editora Cortez, 2014; e O vestido da condessa (infantil), Franco Editora, 2014, O indizível sentido do amor (romance), 2017, Editora Patuá.

Comentários

Rosângela Vieira Rocha disse…
Obrigada pela leitura interessada, generosa e atenta, Alexandre. Gostei muito do seu texto. Um grande abraço.
sonia disse…
Que perigo constante é a mulher viver nesse mundo que até os dias de hoje não deixou o machismo. Vai ser sempre assim. Eu agradeço por já estar na velhice, pois fui vítima de alguns predadores. Caí como uma pata em golpes desse tipo, ficando emocionalmente em frangalhos. Minha auto estima vivia em baixa e eu dando soco em ponta de faca para sair viva dos ataques dos lobos famintos. Hoje, já idosa, tenho saudade só de ser jovem, mas não da minha juventude, período onde eu jogava mais na defesa que no ataque....aliás era acusada por meus relacionamentos por jogar sempre na defesa.
Alexandre Kovacs disse…
Rosângela, obrigado pela visita e comentário! Abs
Alexandre Kovacs disse…
Sonia, como não ficar na defesa nesse mundo atual? Abs
sonia disse…
Alexandre, obrigada por suas palavras, mas como o machismo é mais velho que andar pra frente, estava me referindo ao tempo em que tinha ao redor dos 20 anos. Hoje a mulher já enfrenta melhor, está mais destemida, graças a Deus!!!! Até eu aprendi a atacar quando necessário..rsrsrs
Abraços,
S.
Rosangela Rocha disse…
Interessante comentário, Sonia. Realmente, vivemos em um tempo perigoso. Abraços.

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