Tércia Montenegro - Em plena luz

Literatura brasileira contemporânea
Tércia Montenegro - Em plena luz - Editora Companhia das Letras - 160 Páginas - Capa de Tereza Bettinardi - Foto de Geraldo de Barros / Acervo Instituto Moreira Salles - Lançamento: 2019.

E, enfim, o aguardado segundo romance de Tércia Montenegro, após o premiado Turismo para cegos (Companhia das Letras, 2015), a autora lança agora Em plena luz, no qual volta a escrever com a mesma sensibilidade e originalidade sobre aspectos inusitados dos relacionamentos afetivos em nossa época. A narrativa é ambientada em três cidades, em função das sucessivas decepções e crises emocionais da protagonista em permanente estado de fuga, a partir de Fortaleza, sua cidade natal, passando por Paris, na pequena Liège na Bélgica e de volta a Fortaleza.

O romance tem início em Fortaleza, no tempo presente, onde Lu, como é chamada simplesmente a protagonista (na verdade, Lucrécia Ramos como descobrimos mais adiante, um nome que ela detesta), relembra eventos do seu passado recente na Europa ao ser entrevistada por Caio, um jornalista que está escrevendo uma matéria sobre os atentados terroristas de 2015 em Paris na casa de shows Bataclan e no restaurante Petit Cambodge. Na verdade, Lu não estava presente em nenhum desses locais no momento dos ataques. Quando os terroristas chegaram, ela já havia fugido da cidade de Paris, por outros motivos.
"Caminhar pelas ruas de Fortaleza me põe numa exaltada sensação de liberdade. E também me sinto confortável andando com um homem que não se pretende artista nem gênio. Caio tem uma fisionomia calma, e é um repouso estar ao seu lado, nessa inocência em que vamos os dois, porque (enquanto ele não me conhece) posso esquecer um pouco quem sou. O mistério me faz sentir um tipo de sobressalto leve, como quando estamos prestes a tocar uma superfície que pode ser fria ou quente. Tudo será surpresa. Depois, em retrospecto, confirmaremos indícios, pistas que trazíamos; mas é o instante prévio que me interessa. Tenho um líquido à frente: pela sua aparência, não sei se é viscoso ou macio, morno ou gélido. Qualquer resultado me preenche a dúvida, entretanto é a dúvida que me atrai e me faz demorar os dedos antes de afundá-los no balde." (p. 14)
Lu havia decidido viajar para Paris após uma forte desilusão amorosa com Zeno, o homem que a contratava em Fortaleza como fotógrafa de casamentos, para "manipular as ilusões" como ele mesmo dizia, um trabalho que não satisfazia suas aspirações artísticas. Logo, a decisão de abandonar o Brasil tinha originalmente a motivação de se reencontrar com a arte e fugir de Zeno. No entanto, em Paris, acaba se envolvendo com Étienne, um matemático francês que revela uma estranha compulsão por limpeza e, muito pior, um ódio por imigrantes, negros, árabes, chineses. No momento em que ela percebe o terrível erro decide fugir novamente.
"Apenas quem fugiu alguma vez, com o instinto de um bicho perseguido, pode supor a reação das vítimas. Correr, escapar, agachar-se num canto e, rápido!, experimentar esconderijos com a pupila dilatada, o coração de um atleta alertando todos os nervos – e as mãos que viram garras, o corpo elástico arranhando-se nos escombros, cobrindo-se de poeira, mutilando-se sem dor. A dor vem somente depois. Depois da euforia de saber-se salva, gargalhando descontrolada entre passageiros atônitos. A dor sucede ao alívio: é o entendimento do que aconteceu." (p. 41)
Em Liège, Lu encontra refúgio na casa de Mélanie, uma vendedora de chapéus artesanais. Durante este período, na pequena cidade belga, ocorre o encontro com a reflexão e a arte. A visita ao museu arqueológico de Archéoforum e sua coleção com restos de um capitólio romano e peças de uma antiga catedral  são a inspiração para a escultura, uma atividade a que ela se dedicará no retorno a Fortaleza. É interessante notar que Tércia Montenegro viveu por seis meses nesta cidade visitando museus e bibliotecas locais.
"'Somos todos sobreviventes de alguma coisa', eu disse a Igor e Alícia, logo que voltei da viagem. Mas esse título os que estiveram por um triz – ou 'souberam' disso, deram-se conta de estar inteiros; perceberam com espanto a própria respiração enquanto ao seu lado trouxas compridas se largavam na poeira , e eram pessoas aqueles rolos de pano nas posturas esdrúxulas, caídos como se um caminhão houvesse perdido pelo caminho a carga que ia na caçamba. Os que podem acordar nesse tipo de cenário formulam a palavra 'milagre' é a primeira que pronunciam, muito antes de horror, desgraça. É a palavra egoísta de quem se salvou." (p. 86)
Lu se arrisca e não aceita o destino que lhe é imposto: "Vejo as pessoas reproduzindo os modelos familiares, engolindo os empregos mais absurdos para pensar no consumo e não na morte, viajando conforme o roteiro da moda e seguindo a mídia como se ela fosse um pastor ou uma sereia". Talvez o jornalista Caio possa representar mais uma chance para o amor e uma vida diferente, dessa vez sem fugas, quem sabe?

Sobre a autora: Tércia Montenegro nasceu em 1976, em Fortaleza, onde vive atualmente. É fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Publicou diversos livros de contos e crônicas, e seus textos integram antologias nacionais e estrangeiras. Escreveu também obras voltadas para o público infantil e juvenil. Seu primeiro romance, Turismo para cegos, recebeu o prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, de melhor romance brasileiro de 2015.

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