Tomas Rosenfeld - Vão livre

Literatura brasileira contemporânea
Tomas Rosenfeld - Vão livre - Editora Reformatório - 180 Páginas - Imagens de capa e interna: Tânia Ralston - Design e editoração eletrônica: Negrito Produção Editorial - Lançamento: 2019

Um jovem casal holandês, Kees e Karin, decide assumir um inusitado desafio, doar todo o dinheiro acumulado na curta carreira profissional de Kees, então com trinta e quatro anos, e iniciar uma nova vida fora da Holanda com as duas filhas pequenas, reservando apenas os recursos necessários para a compra de uma casa em São Paulo. Ao longo do romance ficará mais claro para o leitor os motivos que levaram a essa mudança radical, assim como os perfis psicológicos e as diferentes aspirações dos personagens em uma estrutura de narrativas alternadas em primeira pessoa.

O fato é que toda a família deverá enfrentar as barreiras de adptação aos costumes brasileiros e as dificuldades do aprendizado de uma nova língua, particularmente para as crianças na escola, e uma nova divisão de responsabilidades para o casal, porque Karin quer mais tempo para desenvolver o seu lado profissional como designer de joias que havia abandonado devido à criação dos filhos pequenos. O autor utiliza como fio condutor de todo o romance o projeto e a construção de uma nova casa no Brasil, ideia de Kees como uma tentativa de resgate do relacionamento. Todo o processo de concepção dos espaços residenciais e as diferentes etapas da obra funcionarão como símbolo e motivação para a reconstrução de uma vida em comum.
"O 'projeto casa' como eu chamava para mim mesmo, era uma aventura. Um caminho para explorar os limites físicos do mundo, a possibilidade de ir a qualquer canto e lá fincar raízes. A ideia de construir uma casa, o espaço íntimo por excelência, em uma terra estranha. De criar um lar em um solo hostil. Havia calor e frio, o desejo de sentir a brisa do novo e o acolhimento quente do lar, e energias masculinas e femininas. Construir uma casa juntos era ainda uma busca por desvendar os mistérios de Karin; entender o que emana do conjunto, da obra acabada, a partir da sua constituição, de suas partes. Como se eu pudesse deitá-la nua sobre uma mesa e observar cada parte do seu corpo, os poros, cada pelo nascendo, o espaço entre os dedos. Construir juntos era um ato de intimidade extrema." (p. 24)
O projeto dos sonhos de Kees e Karin era de que a casa fosse uma expressão de liberdade e ao mesmo tempo de proteção, "uma casa aberta, sem muitas paredes e vista para a natureza", obviamente uma área afastada da região metropolitana de São Paulo. Surgiu então a inspiração de um cartão postal do Masp fixado em uma antiga geladeira de Amsterdam que os fez lembrar do grande espaço vazio sob o edifício, ao mesmo tempo um abrigo do sol e da chuva e também uma abertura para a cidade. Liberdade e proteção.
"Reconheci em uma foto de página dupla o Museu de Arte de São Paulo. A dureza do concreto e o vermelho das colunas que emolduram o bloco central. O olhar percorreu a vista, a passagem, o fluxo preservado pelo imenso vão livre: a suspensão do edifício envidraçado em uma ficção de leveza. O edifício com seus mais de setenta metros de vão, de concreto sem apoio. / A imagem do Masp era uma memória antiga quase esquecida. Correspondia a uma espécie de ideal inconsciente e nunca realizado dos meus pais. Quando falavam no edifício seus olhos brilhavam um pouco tristes. O prédio representava tudo o que um casal de arquitetos europeus poderia querer construir no estrangeiro. Queriam, como a arquiteta italiana do Masp, radicar-se em um país distante e gritar por liberdade. Erguer uma obra brutal e leve, com oito metros de suspensão, um espaço simbólico de resistência a ditadores como Costa e Silva e Suharto. Os arquitetos modernistas haviam separado o que antes andava junto: a vedação e a estrutura. Antes deles, o que dava contorno às construções e o que as sustentavam era um único elemento, as paredes. Com o advento da estrutura de concreto as coisas se separam e abriram caminho para o traço solto. A liberdade era a base da nova arquitetura e deveria também ser seu grande propósito." (p. 30)
A arquitetura é uma presença constante e um elemento de destaque no livro, utilizada por Tomas Rosenfeld como metáfora para as relações humanas. A construção da casa se revelando ao mesmo tempo "um processo irreversível de destruição do que era imaginado", uma ideia genial do autor que demonstra a impossibilidade do projeto se concretizar como concebido inicialmente, ou seja, o sonho terminando justamente quando a obra é concretizada e nunca exatamente como foi imaginada, mas não é assim com tudo em nossas vidas? Até mesmo no amor, as pessoas sempre se revelando diferentes das nossas expectativas.
"A construção destruía a casa. Enquanto erguiam as paredes, os pedreiros colocavam abaixo o nosso sonho. O projeto perdia-se enquanto concretizava-se. A escada que imaginamos subir e a cama em que imaginei deitar depois de sair do banho não poderiam mais existir uma vez que seriam substituídas pela escada e pela cama de madeira. Era uma sensação estranha e muito pouco racional. Era óbvio que eu sabia que a casa não seria idêntica à maquete ou ao que tínhamos imaginado. Era claro ainda que haveria um longo estágio em que um terreno bonito e arborizado se veria convertido em um campo esburacado entrecortado por obstáculos verticais. Contudo, a obra não era entristecedora como um estágio intermediário, um processo a partir do qual a natureza transformava-se em cultura. A obra era triste pois era o início de um processo irreversível de destruição do que era imaginado. [...]" (p. 146)
Sobre o autor: Tomas Rosenfeld nasceu em São Paulo, em 1986. É formado em Relações Internacionais pela USP e desde 2009 trabalha com temas ligados à inovação social. Para não dizer que não falei de Flora (Editora 7Letras, 2015), seu primeiro romance, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

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