Julián Fuks - Romance: História de uma ideia
Julián Fuks nos demonstra com este seu mais recente lançamento como as atividades de romancista e crítico literário não são incompatíveis. O livro tem como base a tese de Doutorado em Letras do autor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, referente à cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada. A origem da obra poderia, portanto, induzir à percepção de que se trata de um texto exclusivamente acadêmico, afastando os leitores comuns. No entanto, sem prejuízo do conteúdo teórico, este ensaio certamente agradará ao público leitor de romances e de publicações da área de ficção em geral.
Na difícil tentativa de explicar a ideia do romance, um conceito francamente abstrato, ao longo de uma trajetória de quatro séculos, Julián Fuks parte de uma antidefinição: "Paradoxalmente, o romance só se define pela negação, como muitos se arriscaram a dizer: sua marca é a ausência de marcas, sua regra é a ausência de regras, e só o que lhe é imutável é sua mutabilidade eterna." Outra premissa importante é de que o romance persegue a representação da realidade, a "experiência do ser" mesmo com a certeza de que o ser será sempre irrepresentável. A pesquisa de Fuks não se limita aos próprios romances, mas também avalia entrevistas e cartas dos autores em quatro grandes divisões de uma possível história: "A suposta ascensão", "O aparente apogeu", "A queda espetacular" e "A reascensão possível".
A tese em "A suposta ascensão" é que Robinson Crusoé, e não Dom Quixote, representaria o marco inicial do romance moderno. Daniel Defoe sendo então "o patriarca do romance ou, no mínimo, o último de seus precursores", mas este protagonismo é colocado em dúvida algumas páginas adiante pelo próprio Fuks quando afirma que é Julien Sorel, e não Quixote, e não Crusoé, "o homem solitário que parte à procura de um sentido". Logo, a fundação do romance moderno poderia ser atribuída a Stendhal em O vermelho e o negro, que também é avaliado no capítulo referente à época dos grandes romances,"O aparente apogeu", juntamente com autores como Balzac, Dickens, Melville, Flaubert, Dostoiévski, Tolstói, entre muitos outros.
"Quem é então Emma Bovary, para além dessa encarnação muito questionável do autor ['Madame Bovary c'est moi'] nas páginas de sua obra? Construída cena a cena com tal rigor de pormenores, invadida em seus pensamentos por um narrador que nada deixa escapar, um narrador que, pela primeira vez, permite que se confundam as suas vozes, Madame Bovary preserva, todavia, algo enigmático, inacessível, indevassável – talvez como o próprio homem que a concebe. Fora da obra nem mesmo o autor a conhece, mostra-se injusto com ela, julga se tratar de 'uma natureza algo perversa, uma mulher de falsa poesia e de falsos sentimentos'. Imerso na obra, por sua vez, o leitor se vê indeciso, incapaz de chegar a um juízo categórico, vacilando entre a impressão de estar distante de uma garota fútil, uma esposa egoísta, uma mãe relapsa, ou uma mulher com uma consciência aguda das muitas opressões que se abatem sobre ela, da injustiça do mundo em que vive, uma mulher a batalhar com bravura por sua liberdade." (p. 92)
Logo percebemos, portanto, a delícia de livro que temos em mãos – para qualquer apreciador de literatura –, enquanto somos conduzidos por um texto apaixonado e criativo, com citações aos grandes romances da história. É neste questionável apogeu do século XIX, iniciando com escritores como Balzac e Gustave Flaubert, que chegamos até Dostoiévski e seus anti-heróis que já prenunciam um fim para esta mesma época. Voltamos então a uma outra definição de Julián Fuks: "O romance é a um só tempo o impulso atemporal de narrar e a expressão imediata do presente. É a continuidade de um gesto antigo e também a sua crítica – a ruptura com as fórmulas rígidas do passado, com seu dogmatismo, seus vícios solenes."
"Se desejava para as letras russas tal conciliação universal, uma identificação unânime entre todos os leitores, é surpreendente o tipo de narrativa que Dostoiévski se dispôs a escrever. Em seus livros já não estamos diante do indivíduo exemplar, do indivíduo que possa representar todos os demais, abarcar toda a sociedade. Em seus livros, ou ao menos naquele que André Gide considerou 'o ponto culminante de sua carreira', aquele que George Steiner julgou ser 'uma verdadeira suma de toda a sua obra', Memórias do Subsolo, estamos diante de um sujeito excepcional, um homem abjeto, uma aparente monstruosidade. É pela exceção que que Dostoiévski pretende dar conta da humanidade. [...] Esse é o homem que toma a palavra agora par nos contar a sua história, e de partida convém que desconfiemos. Entre os defeitos tantos que ele ostenta sem remorso, está um defeito novo no campo das letras, uma mudança de paradigma que significará um abalo forte com o passar dos tempos: esse narrador mente." (pp. 96-7)
Falando em ruptura chegamos então ao capítulo "A queda espetacular", que discorre sobre os romancistas que "tentaram matar o romance, dolosa ou culposamente". Esta suposta queda, que também poderia ser outra forma de apogeu, é representada por escritores "desordeiros" como: Proust, Kafka, Joyce, Woolf, Gide, Musil, Céline, Svevo, Blixen, Faulkner, Dos Passos, Macedonio, Döblin, Broch, Beckett, Gadda. Sem dúvida o grande símbolo desta ruptura com o passado é Ulisses de James Joyce, assim como seu incompreensível Finnegans Wake, algo que talvez nem possa ser chamado de romance.
"O que desejava Joyce, então, com seu Ulisses? Esse dia narrado com infinita minúcia, esse que se fez o dia mais longo da história da literatura, o dia que parece guardar em seu presente prismático toda a eternidade, esse dia não será a possibilidade da representação levada ao seu momento máximo? Não será uma tentativa das mais hábeis de retratar o mundo em sua completude e devolvê-lo à humanidade? Mas, nesse caso, como interpretar a dimensão metaficcional que a obra assume para a surpresa de todos, seu caráter de comentário estético, seu diálogo tão direto com a história das formas literárias Não será, nesse sentido, o contrário do que acabo de dizer: um golpe impactante contra a representação, uma denúncia contundente da quimera do romance, de que romancista algum jamais poderá se esquivar? Esse mundo próprio, tão assemelhado ao real, não terá o propósito inconfessável de usurpar os atributos do mundo e com ele rivalizar?" (pp. 122-3)
Em "A reascensão possível", o que restaria fazer depois da tamanha desconstrução no século XX? "Que conceito restaria ainda para transformar? Que disrupção provocariam agora os romancistas para garantir ao gênero sua inusitada sobrevida?" Tentando responder essas questões surgiram os ideólogos do nouveau roman, pois "O romance, desde que existe, sempre foi novo", afirmou Robbe-Grillet. Outro grande movimento avaliado neste capítulo é o realismo mágico com o boom da literatura da América Latina, representada por García Márquez, Rulfo, Asturias e Fuentes. Uma "irrealidade demasiado humana" que identificamos tão bem em Cem anos de solidão.
Nesta eterna perseguição do real, em um permanente ciclo de transformação, renascimento e ruptura, qual será o futuro do romance? O autor, ele próprio um romancista, confessa que acumula mais questionamentos do que certezas: "Será o romance a forma desenvolvida do velho hábito de narrar, a suma tentativa de definir em palavras o curso indefinível da vida, de procurar a compreensão possível da existência indagando seus múltiplos sentidos? Ou será algo contrário a tudo isso, o estranho impulso de narrar com o fim de arruinar a narrativa, de indagar seu próprio sentido, o hábito tão velho quanto o outro, embora mais implacável, da autocrítica?"
Sobre o autor: Julián Fuks nasceu em são Paulo, em 1981. Escritor e crítico literário, é autor de Procura do romance, Histórias de literatura e cegueira, A ocupação – romances finalistas dos principais prêmios literários brasileiros – e de A resistência, vencedor dos prêmios Jabuti, Oceanos, José Saramago e Anna Seghers. Seus livros já foram traduzidos para de línguas e publicados em diversos países. É mestre em literatura hispano-americana e doutor em teoria literária pela USP.
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