Eduardo Sabino - Limbo
Na definição original da Igreja Católica, o limbo seria um lugar fora dos limites do céu para onde iriam as crianças que morrem sem terem sido batizadas (uma visão que foi abolida pelo Vaticano em 2007). Logo, um espaço às margens de Deus, daí a etimologia da palavra em latim, "limbus", que significa margem, beira, borda, orla. O substantivo é muito utilizado para expressar, em sentido figurado, um lugar onde são deixadas coisas sem uso e esquecidas. Eduardo Sabino decidiu publicar esta antologia de contos – escritos entre 2009 e 2019 – que aguardavam a oportunidade de virem a público em uma espécie de limbo particular.
O livro é dividido em seis partes temáticas: "TIpos Humanos", "Contos de Flanagem", "Tributos", "Novas Sociedades", "Bíblicos" e "Mitos de Origem", demonstrando a evolução da maturidade do autor não apenas no gênero do conto fantástico, como no seu ótimo lançamento de 2019, Estados Alucinatórios, mas também revisitando ou inventando, com humor e fina ironia, as memórias da infância e adolescência, assim como uma galeria de personagens que busca uma felicidade possível em meio ao caos da vida nas grandes cidades. Afinal, citando Eduardo em um de seus contos: "A escrita é uma forma de fazer algo com o fracasso."
Em "Tipos Humanos", o conto de abertura, "O morto", é direto e demolidor em pouco mais de uma página de extensão e nos encaminha de um só fôlego até o final surpreendente, como pode ser constatado no trecho em destaque abaixo. Já em "Fabiano coveiro" um smartphone da Apple, enterrado juntamente com seu ex-proprietário, desperta a cobiça de Fabiano que decide violar o túmulo e resgatar o aparelho durante a madrugada. "A bruxa" nos apresenta Dona Liliam, moradora de uma casa velha do bairro que adorava escutar Black Sabbath em alto volume, alvo das brincadeiras dos meninos, porta-vozes do preconceito da comunidade.
"Chegamos ao cemitério no final da tarde, mamãe segurando meu pulso com muita força, arrastando-me por entre as sepulturas. Eu nunca tinha estado num cemitário e achei que o lugar seria idêntico ao campinho do clube não fossem as placas de metal em toda parte. Quando chegamos ao coreto onde as pessoas estavam, mamãe de repente travou, respirou fundo e depois foi abrindo caminho até o morto. Era o primeiro que eu via fora da tevê e achei-o decepcionante. Nos filmes de terror os mortos eram sempre assustadores. Aquele lembrava titio dormindo, só faltava roncar. Então mamãe disse, bem alto: Esse aí é o seu pai, meu filho. [...]" - Trecho do conto O morto (p. 19)
Já em "Contos de Flanagem", a própria cidade de Belo Horizonte assume o protagonismo e os personagens são apresentados em deslocamento constante, vagueando sem rumo, como sugere o verbo "flanar", emprestado do francês. Oportunidade para desenvolver alguns encontros surpreendentes e, por vezes, perigosos como em "Os olhos do Papai Noel" ou descrever em "A moça no asfalto" com muito lirismo o efeito irreal provocado por uma violinista, artista de rua, imune às buzinas e vozes da multidão apressada, sempre na esquina da Tamoios com Rio de Janeiro, até o dia em que um decreto da prefeitura cala a beleza da música.
"O problema de pegar o ônibus no mês de dezembro, neste dia e instante, é o Papai Noel me encarando. Odeio bons velhinhos. Sempre me foderam, em diferentes fases da minha vida. Quando criança, mamãe dizia que Papai Noel havia machucado o pé – daí a falta de presentes na árvore de Natal; que Papai Noel não havia gostado do relatório sobre meu comportamento durante o ano, ou qualquer outra mentira que terminava com o hô, hô, hô ecoando irônico em meus ouvidos. Já na adolescência, tendo matado com um só tiro, deus e o bom velhinho, tive de ver meu tio vestido de Papai Noel, meio bêbado, engasgar com o osso do frango e morrer na nossa frente, estragando o Natal para sempre. [...]" - Trecho do conto Os olhos do Papai Noel (p. 113)
Em "Tributos", um dos melhores contos do livro, "As almas do Doutor Leôncio" sintetiza bem o estilo de Eduardo Sabino, sempre bem-humorado e provocador, nos apresenta um protagonista que sofre de "ceticismo agudo" para toda ideia que não seja comprovada no âmbito dos fenômenos científicos e, no entanto, começa a receber a visita de almas penadas nos momentos mais inconvenientes até chegar ao ponto de não conseguir diferenciar os mortos dos vivos. O Doutor Leôncio quer provar a todos que sofre de alucinações, mas o que fazer se todos os seus exames não identificaram doenças físicas ou psíquicas.
"Tentou guardar as almas para si, mas o sigilo não foi uma boa escolha. Nem sempre conseguia diferenciar as almas dos vivos. Nem sempre vinham com trajes de época, resquícios da morte ou detalhe qualquer. Foi questão de tempo até começarem os flagrantes: uma conversa na biblioteca com uma professora invisível aos outros leitores; a advertência, diante da turma, a um aluno atrasado. Após os episódios, passou a distinguir, até certo ponto, os vivos dos mortos no pátio da universidade. Os vivos mantinham uma expressão de deboche na sua presença; as almas, uma gentileza sincera." - Trecho do conto As almas do Doutor Leôncio (p. 153)
Sobre o autor: Eduardo Sabino é escritor e editor na Caos e Letras, com quatro livros de contos publicados, entre eles, Estados Alucinatórios (2019) e Naufrágio entre Amigos (2016). Venceu com o conto "Sombras" o prêmio Brasil em Prosa 2015, organizado pelo jornal O Globo e a Amazon. Já teve textos publicados em Portugal, Argentina e Moçambique.
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