Daniel Galera - O deus das avencas: Três novelas

Literatura brasileira contemporânea
Daniel Galera - O deus das avencas: Três novelas - Editora Companhia das Letras - 248 Páginas
Capa: Alceu Chiesorin Nunes - Imagem de capa: Protea, de Allison Schulnik, 2012 - Lançamento: 2021

O mais recente lançamento de Daniel Galera é o resultado de um raro exercício de composição ficcional ao mesclar diferentes gêneros literários em cada uma das três novelas que compõem o livro; iniciando com o realismo contemporâneo (passado recente) em "O deus das avencas", utilizando a ficção científica em "Tóquio" (futuro próximo) até chegar na distopia francamente pós-apocalíptica de "Bugônia" (futuro distante). Contudo, todas as narrativas têm como ponto comum a frágil relação humana com seus próprios semelhantes e o meio ambiente, ficando muito evidente para ser ignorado os efeitos negativos do entorno político atual, assim como as possíveis consequências de nossas decisões para o futuro do planeta.

Esta obra me lembrou do recente ensaio de Julián Fuks (Romance: História de uma ideia) que nos mostra como a narrativa ficcional persegue sempre a representação da realidade, a "experiência do ser" mesmo com a certeza de que o ser será sempre irrepresentável. Nesta obra, Daniel Galera busca o mesmo objetivo e consegue conferir verossimilhança aos seus textos, uma vez que, mesmo nas ficções e distopias mais delirantes (embora possíveis), os personagens vivenciam a emoção de se sentirem humanos; talvez este seja o maior mérito de O deus das avencas, além, é claro, de proporcionar uma leitura muito prazerosa.

A primeira novela, que empresta o título ao livro, é ambientada nos dias anteriores à eleição de 2018 e a vitória de Jair Bolsonaro. Lucas e Mariana decidem se isolar em casa, interrompendo a conexão com a internet, enquanto ela entra em trabalho de parto, até o momento certo de irem para a maternidade. Divergências políticas entre Mariana e os pais fizeram com que ela decidisse afastá-los de todo o processo. O contraste entre a esperança de um futuro melhor após o nascimento do primeiro filho e a sombria expectativa da eleição de um governo de extrema direita, preocupa o casal, tanto pelo futuro da família quanto pelo destino do país. Da noite de sexta-feira até o domingo, dia da eleição, Mariana passa por muitas complicações para manter os planos de um parto natural humanizado, o que parece colocar em risco a saúde dela e do bebê.

"Estão esperando que ela comece a sangrar, a sentir dor. Manuela está com ódio de tanta demora. Já faz duas semanas que não aguenta mais carregar a barriga por aí, nas escadas do prédio sem elevador, pelas calçadas repletas de lajotas soltas que ainda espirram nas suas canelas inchadas a água suja das últimas chuvas de outubro. Quer dormir de bruços e sem o amparo de travesseiros, levantar do vaso sem precisar se apoiar na pia, parar de levar chutes nas costelas pelo lado de dentro. Quer voltar a transar sem ser derrotada toda vez por essa massa que se agigantou em seu corpo. E Lucas, que tem de si mesmo a imagem de uma pessoa que passou a vida toda subhugando o cansaço sem se deixar vencer, confiante no moto-perpétuo de vigor que abriga nas entranhas e o mantém sempre no combate por mais que esteja apanhando, se sente acuado nos últimos tempos por uma sensação de perigo que não compreende bem. Tem medo de não ter dinheiro para o básico, de que Manuela sofra em demasia, de ter um derrame ou um infarto, de que o país entre em guerra civil na madrugada de segunda. [...]" - Trecho de O deus das avencas (p. 7)

Em "Tóquio", o autor imagina um futuro próximo "num planeta assolado por doenças novas, violências antigas e tecnologias traiçoeiras" em uma versão da cidade de São Paulo que sofre os efeitos do aquecimento global e pandemias, obrigando uma privilegiada pequena parcela da população a sobreviver em ambientes protegidos por refrigeração, enquanto a maior parte do povo é relegada à própria sorte. Neste contexto, uma já decadente tecnologia de digitalização da mente oferece a oportunidade de continuidade após a morte, com a consciência digitalizada sendo transplantada para dispositivos de formatos variados como androides. No entanto, as "cópias" de entes queridos se transformam em problemas para os "guardiões" que recorrem à terapia de grupo. O protagonista passa por um dilema ético ao decidir desativar o dispositivo com a consciência da mãe, em vida uma bilionária inescrupulosa.

"A androide pensou por alguns instantes, sem que isso causasse nenhuma alteração em sua fisionomia. Por fim, eu começava a me acomodar diante da presença daquele artefato. Apesar do realismo espantoso da maioria das suas características físicas, a sua natureza artificial ia se revelando nos detalhes de comportamento. Era o problema conhecido desses androides que o mercado, havia uma década, rotulava de antropomorfos. Bilhões de dólares em investimento e pesquisa eram dedicados a simular a oleosidade da pele e os suaves movimentos rítmicos da respiração, mas não havia como simular algoritmicamente a cascata inescrutável de reflexos físicos desencadeada nos organismos biológicos pela experiência interna de cada instante. Meu arroubo erótico, reparei, tinha desaparecido e deixado em seu lugar o sentimento de vergonha que vem no rastro das fantasias tolas, como se eu tivesse tomado o desejo emprestado de outra pessoa e só agora o percebesse. [...]" - Trecho de Tóquio (p. 83)

Já em "Begônia", a novela é ambientada em um distante futuro pós-apocalíptico, infelizmente bastante plausível também, no qual encontramos uma pequena comunidade sobrevivente chamada "Organismo" que vive em sintonia com colmeias de abelhas que se alimentam de cadáveres e, em contrapartida, geram o "necromel", um produto que confere imunidade às doenças que exterminaram grande parte da população na Terra. A harmonia deste sistema, garantida pela aliança e cooperação mútua, é quebrada pela chegada de um forasteiro que desperta o medo e a violência. A jovem protagonista Chama representa a esperança na retomada do equilíbrio entre as pessoas e o meio ambiente, única chance para a continuidade da espécie humana.

"[...] A Velha é a pessoa mais idosa do Organismo. Tem olhos verdes que brilham por trás das pálpebras enrugadas e frouxas e vive cercada de seriemas, suas aliadas no Topo antes de todos os outros humanos. Mora num casa com varanda cujas tábuas foram reforçadas ao longo das décadas com pedras, barro, trepadeiras e lonas. Dizem que está aqui desde o começo. Foi a primeira a chegar. A Velha não confirma essa história, pois para ela não deve existir história. Precisamos resistir a inventar o passado, ela ensina, esquecer os relatos e desfazer os registros. Não há necessidade de passado, pois o presente guarda todos os indícios que precisamos para manter o Organismo vivo. Você vê uma fileira de pedras e sabe que em outro tempo, não importa se ontem ou há mil anos, alguém traçou bem ali uma fronteira protegendo um olho-d'água ou demarcando um perigo na topografia. Vê o capim esmagado e sabe que ali transitam manadas de javalis. Vê o sofrimento nos olhos de um humano e sabe que precisa tolerar sua ira e violência, pois ele age assim no momento por causa do sofrimento que ele mesmo não percebe. [...]" - Trecho de Bugônia (p. 176)

Sobre o autor: Daniel Galera nasceu em 1979, em São Paulo, e vive em Porto Alegre. É autor, entre outros, dos romances Mãos de Cavalo (2006), Barba ensopada de sangue (2012), livro do ano do prêmio São Paulo de Literatura, e Meia-noite e vinte (2016). É autor também do álbum em quadrinhos Cachalote (2010), com o desenhista Rafael Coutinho.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O deus das avencas de Daniel Galera

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