Leonardo Brasiliense - Peixe estranho

Literatura brasileira contemporânea
Leonardo Brasiliense - Peixe estranho - Editora Companhia das Letras - 120 Páginas - Capa e imagem: Mateus Valadares - Lançamento: 2022.

Em seu mais recente romance, Leonardo Brasiliense lida com um protagonista que apresenta uma extrema dificuldade de comunicação. Após dois relacionamentos fracassados, Marvin encontrou em Analice a mulher ideal: "Bonita, bem-vestida, educada e paciente... Analice é perfeita. Ela é uma boneca de silicone." Fácil perceber que Marvin é um weird fish"aquele tipo estranho que fica lá, no fundo escuro do oceano mais fundo, onde a luz não chega e de onde ele precisa fugir..."como na letra de Thom Yorke do Radiohead, uma banda que é uma verdadeira obsessão para o protagonista (e também para o resenhista, diga-se de passagem).

Ao narrar os detalhes da rotina de Marvin e Analice, sentados no sofá da sala ao final da noite, olhos fixos na TV, o autor nos mostra o absurdo de um relacionamento entre um homem e uma boneca de silicone e que, contudo, se mostra tão semelhante ao de outros casais de carne e osso, supostamente "normais", vivendo em um permanente estado de solidão compartilhada: "Embora os braços se encostem, o casal parece distante, sem intimidade, sem afeto. [...] Ambos têm o olhar vidrado na TV. Não fosse pelo movimento periódico de Marvin com a taça de vinho, a goles curtos, pareceriam os dois bonecos de silicone acomodados no sofá."

"Ela tem um metro e sessenta e oito de altura, pesa quarenta e cinco quilos, cabelos castanhos, pele clara, olhos verdes de cílios compridos e sardas discretas nas maçãs do rosto, nos ombros, no colo. O nome de batismo era Renee. Ela nasceu em San Marcos, pequena cidade do condado de San Diego, na California, Estados Unidos da América, e seu pai se considera um artista. Chegou à casa de Marvin elegantemente maquiada e com as unhas pintadas de vermelho-borgonha, com um vestido púrpura de decote mediano e aberto nas costas. A maquiadora e manicure e a estilista, empregadas de seu pai, também consideram o que fazem uma arte. Tem bons modos. Sentada no sofá da sala, cruza as pernas com charme enquanto ouve Marvin falar – ele gosta de falar. Em nenhum momento o interrompe, ela tem paciência. / Bonita, bem-vestida, educada e paciente... / Analice é perfeita. / Ela é uma boneca de silicone." (pp. 13-4)

Ao longo da narrativa, sempre apoiada em uma prosa direta e precisa, incomodamente bem-humorada e que alterna passagens em primeira e terceira pessoa, ficamos conhecendo os detalhes dos relacionamentos pregressos de Marvin com a "primeira ex" e a "segunda ex", como ele costuma nomear as mulheres com as quais conviveu, por meio de seus diálogos, na verdade monólogos, com a bela e paciente Analice, que não tem outra alternativa a não ser escutar. Na verdade, Marvin nunca exerceu o controle da sua vida a partir de decisões próprias, sua introversão e isolamento social o fazem estar sempre a reboque das decisões de terceiros, sendo normalmente abandonado.

"Quando a primeira ex 'foi embora', os caras do Radiohead estavam lançando o In Rainbows. Uma grande coincidência: eles. a maior banda de todos os tempos, sem gravadora; eu, sem esposa. Mas a vida segue. / Eles tiveram aquela sacada genial de usar a internet a seu favor: colocaram o álbum pra download com a ideia de 'pague o quanto achar que merecemos', dava pra baixar de graça. Deu polêmica, e funcionou. Curti as músicas todas, mas levei quase três anos – e nesse meio-tempo cometi alguns desastres – até perceber que a estratégia também servia pra mim: internet. / Dos desastres, nem quero falar. Rolou de tudo: balada, aventura de uma noite só, aventura de um fim de semana, double date, aventura entorpecida por cerveja ou vinho, e inclusive o pior dos erros: colega de trabalho." (pp. 15-6)

Leonardo Brasiliense utiliza de forma corajosa e criativa a situação bizarra do casal Marvin e Analice – que não é de forma alguma inédita na atualidade e tende a se tornar ainda mais comum com o advento da Inteligência Artificial – para falar de um assunto mais abrangente, a carência afetiva e a busca incessante pelo amor, principalmente quando conhecemos melhor as origens da insegurança emocional do personagem na infância. Um livro para refletir sobre essa nossa estranha época na qual, apesar de tantos aplicativos e dispositivos eletrônicos para estimular o convívio social, estamos cada vez mais solitários, isolados em nossos próprios mundos.

"Acordei sozinho em casa... Bem, acordei com o gato, mas sem ela. Havia um bilhete na porta da geladeira dizendo que ia sair mais cedo pra receber um fornecedor no café e me pedindo pra comprar a ração do Príncipe, estava no fim ou já tinha acabado, não lembro. Sim, o nome dele era Príncipe; caso eu almejasse o título, que desistisse. Então, uns minutos depois de controlar o desejo de afogar o gato na água da privada, eu era o responsável por alimentá-lo, e bem, com uma ração cara que manteria seus rins protegidos do excesso de proteínas e seu pelo sedoso e cheiroso. Perfeito. Era a magia do amor. Ou melhor, da paixão. Ou do amor da segunda ex pelo gato, seu Príncipe, e da minha paixão por ela, deixando as coisas precisas. / Mas, na época, essa precisão toda não existia, não em mim. Nos casamos meteoricamente, atropeladamente, cegamente apenas dois meses após o primeiro encontro no café." (p. 38)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Leonardo Brasiliense nasceu em 1972, em São Gabriel (RS). Aos seis anos, quando começava a se alfabetizar, morou numa biblioteca por seis meses. Nos anos 1990, durante a faculdade de medicina, estudou psicanálise, mas desistiu de exercê-la para se dedicar à literatura. Tem doze livros publicados, entre eles, Três dúvidas (2010, vencedor do prêmio Jabuti) e Roupas sujas (2017, finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Além de escritor, é roteirista de cinema e fotógrafo amador.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Peixe estranho de Leonardo Brasiliense

Comentários

Muito legal a tua Resenha, Alexandre! Obrigado pela leitura e atenção.
Grande abraço,

Leonardo
Alexandre Kovacs disse…
Oi Leonardo, fico feliz que tenha gostado da resenha. Obrigado pela visita e comentário.

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