João Carlos Leite - O invisível em toda plenitude
O lançamento de João Carlos Leite, "O invisível em toda plenitude", tem características de romance de formação, aventuras e crítica social em proporções equilibradas, ligadas por uma narrativa segura que alterna a condução principal em terceira pessoa com alguns trechos na voz de um personagem inusitado, o cachorro Magrelo. Em um momento no qual a literatura contemporânea busca o rompimento com as estruturas tradicionais, o autor resgata alguns ingredientes clássicos que tornaram o gênero de romance um sucesso de entretenimento desde o século XVIII, apesar de ter se tornado ao mesmo tempo um conceito abstrato e supostamente indefinível, devido à variedade de estilos que surgiram ao longo do tempo.
Neste romance, o protagonismo é dividido entre os dois irmãos órfãos, Laurindo e Pedro, que abandonam a região rural para tentar a sorte na cidade. Laurindo, já com vinte e cinco anos, sonha se alistar no exército, Pedro tem apenas doze anos e depende unicamente do irmão mais velho para sobreviver após a morte dos pais. A cidade de Três Rios, no interior do Estado do Rio de Janeiro, os recebe com indiferença e alguma crueldade, frustrando os sonhos de Laurindo de seguir a carreira militar e colocando-o em um caminho sem volta de crimes e violência. Pedro, apesar de ainda menino, terá que se virar sozinho para descobrir o próprio destino e, quem sabe, um improvável reencontro com o amigo Magrelo depois de alguns anos.
"Antes do ônibus se pôr em movimento, Pedro encostou o rosto no vidro embaçado e avistou Magrelo parado no mesmo local onde ele estivera sentado minutos atrás. Boca aberta, a língua pendurada num canto, o cão certamente havia corrido do sítio até ali em busca do socorro. No intuito de resgatá-lo, tentou se levantar, mas o irmão o impediu colocando-o de volta ao assento. Ainda não o havia perdoado pelo recente sumiço. 'Você está vendo coisa que não existe', esbravejou. 'Não tem nada na calçada, nem cachorro, nem gente.' / De fato, ao observar outra vez, o local estava completamente vazio, até mesmo os pombos, que até pouco tempo bicavam as migalhas perdidas no chão, haviam desaparecido. O motorista assumiu o volante, levou aos lábios uma medalha dourada que trazia pendurada no pescoço, fechou a porta puxando uma alavanca e finalmente começaram a se mover. Não haviam deixado a vila, quando Pedro acreditou ouvir alguns latidos vindo da estrada, abriu a vidraça e colocou a cabeça ao vento, mas antes que pusesse enxergar alguma coisa, o mundo se desintegrou numa nuvem branca." (pp. 25-6)
Ao longo da narrativa, os dois irmãos enfrentarão uma série de percalços ao confrontarem os preconceitos e a hipocrisia da sociedade local em suas estruturas estabelecidas de poder. A trama avança com velocidade, impulsionada por uma rica descrição visual e diálogos precisos, elementos que fazem com que seja difícil interromper a leitura e confirmam o que os leitores já sabem: a permanência da instituição do romance tradicional, mesmo sendo algo tão difícil de definir, ou, simplesmente, a importância de saber contar uma boa história, hoje e sempre.
"Havia outros prisioneiros dentro da cela para onde Laurindo foi empurrado. Alguns ergueram os olhos desconfiados, porém já acostumados ao constante movimento noturno não despenderam interesse. Entrou silencioso, sentou-se no chão sem olhar ao redor e se recostou na parede. Vestia um terno alugado, a gravata se perdera em algum momento durante a briga, a costura no ombro direito cedeu expondo a manga da camisa branca, também alugada. Apesar dos estragos, a roupa lhe dava um aspecto um pouco mais frágil do que era na verdade. Para um criminoso desavisado, aparentava ser uma presa fácil, alguém alcoolizado e pronto para ser abatido. Logo, alguns dos presos cochicharam entre eles e se organizaram como uma alcateia ao avistar um búfalo ferido e desgarrado da manada. / 'Que estúpido!' Esfregava os pulsos esfolados pelas algemas enquanto relembrava cada lance do jogo que acabara de perder. 'Aquele desgraçado tinha em mãos o Rei e a Dama de ouro. Fui enganado o tempo todo.' Via claramente a sequência das cartas no chão sujo da prisão: Ás, Rei, Dama, Valete e Dez, todos so mesmo naipe. 'Royal Flush desde o flop. Que idiota... E o Alfredo? O que fizeram com aquele pobre coitado?', desabafava de vez em quando sem perceber que falava sozinho." (pp. 66-7)
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Um abraço;