Thiago Medeiros - Dias depois saímos do leprosário
Neste seu mais recente lançamento, Thiago Medeiros lida com a poesia em versos inspirados na vida pós-pandemia COVID-19, ainda sob o recente impacto de uma distopia que nenhuma ficção poderia ter imaginado. Contudo, este resumo é insatisfatório para uma obra que trata de temas tão abrangentes quanto família, religião e a própria fragilidade da natureza humana. Sempre atento ao ritmo e à oralidade dos seus versos, o autor renova a mágica da literatura ao alcançar a universalidade por meio de um regionalismo que canta ao mesmo tempo a esperança e a desesperança, como destacado pelo poeta Mailson Furtado na orelha do livro, a ambiguidade de um sentimento tão representativo desse sertão que existe dentro de todos nós.
Thiago sabe como utilizar a sua habilidade de prosador para transmitir uma intensa carga emocional em cada poema-história, caso da tia-avó azeda que um dia foi menina, em "Certa vez nos tiraram grandes pedaços", reproduzido integralmente abaixo ou "não me conservem fios de cabelo", nos lembrando que sempre haverá um convite para a queda, um chamado das janelas e alturas: "do primeiro sonho / aos três anos de / idade // em pé / na beira do prédio / num corpo adulto // aos pés do prédio / concreto pressa / meio-fio ratazanas // transeuntes é / uma palavra / horrenda // e / sim / um salto // entre o alto do prédio / e o concreto apenas / vento // e / uma / frase // agora / só resta / cair // e / esperar // e o caminho / de vento / assanhando os cabelos [...]"
Certa vez nos tiraram grandes pedaços
dizemde certa minha tia-avóser uma mulherazeda
sem linhagemsem amoresvoz de lixa
minha bisavó
aquela que rezavaa tantos e tantas atéque murchassem osgalhos de arruda, eumesmo tantas vezesafastado de quebrantoe olhado sob as rezasde sua boca em carnemole ausente de dentes
certa vez notouque a mulherazeda
dizem que
já foi uma
menina e
teria sido
nessa
época
não comia
toda a comida
do prato
e as sobras
não
iam ao lixo
decidiu
se esconder
a muher
que ainda não era
azeda
mas uma menina
e diziam ser
minha tia-avó
punha as sobras
na barra da saia
e sumia no quarto
afastava a cama
abria uma caixa
não sei do que
eram as caixas
naquele tempo
papelão
madeira
porcelana
ágata
zinco
mas caixas
sempre foram
esconderijos
para maiores
pequenos
amores
minha bisavó
que desde sempre
rezava agarrada
em galhos de arruda
afastando quebrantos
doenças
mazelas
olhados
viu a filha
que ainda não
era azeda
nem minha
tia-avó
talvez
apenas
menina
alimentar um filhote
de rato
com a comida que preparava todos os dias
com a comida que mandava para meu bisavô todos os dias
enquanto ele mutilava pedaços de terra com enxadas para
então fecundá-la em sementes que não eram as dele
estranha
orgia
de metal
de homem
de planta
de terra
com a comida que cozinhava para as quatro crias todos os
dias desde que parou de amamentar
quando rezava
minha bisavó
falava de São
Miguel Arcanjo
aquele homem de saias
agarrado a uma espada
e balança enquanto pisa
o rosto de satanás
que protegia
o menino jesus
na manjedoura
quando rezava
minha bisavó
falava de São
João do Carneirinho
eternamente
menino
agarrado à lã
dos cordeiros
quando rezava
minha bisavó
falava de Lúcia
Jacinto e Francisco
tão puros
anunciando
as palavras de
Nossa Senhora
de Fátima
quando viu o rato
ainda filhote
alimentado
amado
e até acariciado
pela menina que
não sabia que
seia azeda
minha bisavó disse coisas
mais ou menos assim
desgraçada
miserável
louca
imprestável
sua herege
dando comida de cristão a um bicho horrendo
não respeita meu suor
não respeita teu batismo
então
minha bisavó
obrigou a filha
que não era
minha tia-avó
e não sabia nada
sobre azedumes
a jogar o filhote
de rato
no galinheiro
às vezes
penso em
deus
me pergunto
se ele se
compadeceu
do filho
açoitado
cuspido
crucificado
toda aquela
história
contada por
Mel Gibson
você com
certeza lembra
e se chorou
e se lamentou
e se houve luto
deve ser traumático perder um filho assim
mas estamos
falando de deus
não sei se a ele
cabem lágrimas
e dores e gemidos
e manhas e lutos
mas
se sentiu algo
foi bem parecido
com aquela menina
vendo o pequeno
maior amor
desses que escondemos
em pequenas
caixas
morrer sob os
bicos das galinhas
dizem
de certa minha tia-avó
ser uma mulher
azeda
e certa vez
nos tiraram
grandes pedaços
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