Mário Baggio - A vida é uma palavra muito curta

Literatura brasileira contemporânea
Mário Baggio - A vida é uma palavra muito curta - Editora Penalux - 222 Páginas - Capa: Guilherme Peres - Imagem de capa: pintura de Witold Wojtkiewicz - "Crianças surpreendidas por uma tempestade" - Lançamento: 2024.

Em seu mais recente lançamento, Mário Baggio volta a nos apresentar um livro de narrativas curtas ou minicontos com base em um estilo que tem marcado a carreira do autor, normalmente associado a um realismo fantástico que desnuda o melhor e o pior do comportamento humano em situações cotidianas. Uma outra característica recorrente é a de reunir os textos direta ou indiretamente ligados em torno de uma ideia comum. Nesta coletânea, dividida em três partes: "A eternidade do instante", "O tempo em tempo de estio" e "O futuro foi muito pior", fica claro que a passagem do tempo, em toda a sua subjetividade, foi a grande inspiração de Baggio na maioria das narrativas.

Surpreende a inesgotável sucessão de argumentos e personagens que podem abordar temas pessoais em "Vazios", refletindo sobre a dor da perda de um ente querido ou problemas urbanos do nosso tempo, amplificados pela desigualdade social, como a violência de gênero, abordada com originalidade em "Angel". No entanto, podemos repentinamente sair do espaço urbano e presenciar em plena floresta "O instante brevíssimo", no qual leão, gazela e caçador enfrentam um momento de perplexidade. Que dizer então de "A melhor estação", protagonizado por uma cadela cega e abandonada nas ruas da cidade ou "Um elo a mais", exercício notável de violência e loucura.

No conto que empresta o título ao livro, "A vida é uma palavra muito curta", as consequências da absurda situação dos refugiados que precisam abandonar o seu país com tão poucas chances de sobrevivência: "Não sairia de seu país se ainda houvesse um país, nem de sua casa, houvesse casa." Identifico os reflexos da poesia improvável de Warsan Shire: "Ninguém deixa a própria casa a menos que seja a boca de um tubarão. / Ninguém põe os filhos num barco a menos que a água seja mais segura que a terra." O mesmo apelo de racionalidade pretendendo impedir que homens, mulheres e crianças se tornem apenas corpos abandonados em alguma praia distante.

Vazios
Um conto de Mário Baggio

Meu pai morreu mais de trinta anos atrás e, ainda hoje, há noites em que sua falta me desorienta e desconsola. Não consigo dormir. Quando a insônia fica insuportável e a ausência dele se transforma em algo tão sólido que se pode cortar com uma faca, pego o telefone e marco o número da velha casa onde nasci e me criei. Fiz isso várias vezes e até hoje nunca falhou: mesmo que a casa não exista mais – há um estacionamento no lugar –, meu pai sempre atende: "Alô, pode falar, quem está do outro lado?"

Ouço sua inconfundível voz de tabaco. Prendo a emoção e a respiração por dez segundos e meus olhos visualizam sua masculina figura de urso segurando o aparelho com uma mão e a outra apoiada na cintura. Aliviado, desligo sem dizer palavra.

Volto para a cama pensando que neste mundo há vazios que nunca serão preenchidos, e que o passado, quando volta à memória, tem a função de tornar o presente menos dolorido. Sei também que, se alguma vez eu responder, o encanto vai se quebrar, o milagre deixará de acontecer e eu não dormirei nunca mais.

A vida é uma palavra muito curta
Um conto de Mário Baggio

O homem carrega o menino no colo, arruma sua roupinha e canta uma canção em seu ouvido. aperta-o contra o peito e o beija na testa. As horas passam e ele não se cansa de mimá-lo. Não dá atenção aos conselhos dos amigos e parentes que, em vão, se aglomeram na praia e tentam fazer com que desista daquela loucura. Não sairia de seu país se ainda houvesse um país, nem de sua casa, houvesse casa. Aponta para todos as ruínas do bairro onde morava. "Vou esperar que joguem outra bomba?", grita, com raiva. "Você não vai aguentar a travessia", lamentam os outros, "não é desse jeito que se entra num barco com uma criança de colo. Você não tem noção do perigo. E, quando chegar a qualquer outro lugar, vai virar homem sem pátria. Seu lugar e aqui."

Ele não arreda o pé da areia, atento ao barqueiro que, a qualquer momento, dará a ordem para embarcar. Está convencido de sua decisão. Aperta mais o menino perto do coração, balançando o corpo em antecipação ao ritmo das ondas. Vira a cabeça para trás e grita para os que tentam fazê-lo desistir: "Só as pedras e as árvores são felizes aqui, porque são mudas e não podem se mover. Vão morrer na mesma terra em que nasceram. Meu filho e eu, não."

Uma velha se aproxima e lhe estende um alforje: "Tome, você vai precisar." Ele pega: "Obrigado, tia." Ela encosta os dedos na testa do homem e do menino, abençoando-os: "Vão na companhia de Deus." O homem ri: "Vamos não, Ele vai ficar aqui, ocupado demais em destruir o nosso país." A velha não desiste: "Vou pedir pra Deus te trazer de volta." Ele lhe dá as costas: "Não sou pedra nem árvore."

No colo do pai, o menino ainda dorme, alheio à vida de privações que o espera. Não tem entendimento de futuro. Não há garantia de que venha a tê-lo e de que suportará ser chamado de gente de segunda classe. Na terra estrangeira não haverá garantia de nada. O tempo deixou de ter importância. Um dia os refugiados chegarão a algum país e, com sorte, serão recebidos com alguma comida. Até lá o menino já estará morto e o pai o sepultará em terra firme, não na água.

O barqueiro anuncia: "Embarcar!" Alguém na beira da praia sobe na ponta dos pés para gritar: "O idioma, você não conhece o idioma, não vai entender nada do que disserem lá no estrangeiro." O homem, o corpo inteiro já dentro do barco: "O mundo inteiro conhece o dialeto da miséria." Outro corre até a beira da água: "Você vai morrer, infeliz!" O homem tenta sorrir: "Eu vou é sobreviver. Sobreviver é da minha natureza."

Segue a embarcação, feroz, perdida, devastando distâncias, carregando aquela gente que mira, espantada, o incerto, o desconhecido, a novidade, entregue à paixão inútil do desarraigo, à ilusão de uma vida nova. É uma gente que olha para o céu e intui vendavais, se agarra à beirada do barco e reza para que tudo acabe logo. Que pronto se materialize o que há de vir, porque a esperança não viverá muito mais tempo.

O país natal já se distancia. Não se veem mais o contorno e o claro-escuro da praia. A escuridão tem olhos felinos. Na despedida, a imagem da multidão que ficou abanando os braços dando adeus: ninguém teve tempo de tirar foto, em dois minutos tudo será lembrança sem registro que se possa acariciar com os dedos.

Dentro do barco, além do silêncio, só o murmúrio incessante das rezas. No colo do pai, o menino continua de olhos fechados. Mas não está dormindo.

Angel
Um conto de Mário Baggio

A primeira coisa que faço é trocar o nome na etiqueta assim que desfaço o embrulho. Os coreanos são umas bestas, não tem imaginação para nomes. Sarang, Boram e Yeoreum não são bons. São uma merda. Prefiro Suelen, Juliette ou Britney. O nome certo aumenta o meu desejo por elas, além de parecerem mais reais aos meus olhos. Tão mais reais que até engasgam quando trabalham. Mexem os quadris como profissionais, suspiram, choram e riem. Franzem as sobrancelhas quando se entediam. Fecham as pálpebras quando estão cansadas ou quando querem escapar de suas obrigações. Sei que, na maioria das vezes, elas fingem que chegaram lá, mas eu não me importo: eu sempre chego.

Apaixonei-me perdidamente pela última que comprei antes mesmo de rasgar a embalagem e tirá-la da caixa. Batizei-a de imediato: Angel. Porque pra mim parecia um anjo. Farta cabeleira, pele de cetim doce e perfumada, pés perfeitos, uma coisa de louco!

Pecebi com o tempo que Angel era um pouco preguiçosa e não gostava de estar todos os dias à disposição do seu dono, que por acaso sou eu, como deve ser desde que o mundo foi criado. Me senti enganado. Amanhã, sem falta, vou reclamar pro fabricante. Farei uma chamada de vídeo para a empresa coreana e vou esculachar com aquela gente. antes disso, nada melhor do que uma boa surrra na Angel pra que aprenda a cumprir com seus deveres. Todas as outras aprenderam.

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Mário Baggio é jornalista e escritor. Nasceu em Ribeirão Claro/PR. Mora em São Paulo/SP. Tem cinco livros de contos publicados: "A (extra) ordinária vida real" (2016), "A mãe e o filho da mãe (2017), "Espantos para uso diário" (2019), "Verás que tudo é mentira" (2020) e "Antes de cair o pano" (2022). Publicou contos em várias revistas eletrônicas (Germina, Gueto, Crônicas Cariocas, entre outras). Participou da "Antologia Ruínas" (2020), "Tanto mar entre nós: diásporas" (2021) e "Antologia de Contos da União Brasileira de Escritores" (2021 e 2023).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar A vida é uma palavra muito curta de Mário Bággio

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