Milton Coutinho - Autobiografia póstuma de Machado de Assis
Uma ideia genial e muito bem executada por Milton Coutinho neste mais recente lançamento, segundo volume de sua Trilogia Brasileira, iniciada com o romance anterior – No domínio de Suã. A narrativa é conduzida em primeira pessoa pelo próprio Machado de Assis (1839-1908) na condição de um defunto autor, seguindo a mesma fórmula que eternizou o clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas. Um desafio adicional, além da dificuldade óbvia de reproduzir a deliciosa prosa do nosso maior autor, transformando fatos reais em ficção de forma convincente, foi adotar a cronologia inversa de uma biografia tradicional, fazendo com que o livro fosse dividido em quatro partes, do final para o início: O viúvo (1908-1904), O escritor (1904-1869), O mulato (1869-1851) e O menino (1851-1839).
A autobiografia do nosso bruxo do Cosme Velho ganha tons bem-humorados ao demonstrar com fina ironia a soberba e outros pecados inconfessáveis do mundo literário da época. Por exemplo, as críticas não somente à obra, mas também às ambições políticas de José de Alencar, assim como o suposto relacionamento amoroso de Machado com a esposa deste, Georgiana da Gama Cochrane, ganham espaço considerável na trama com referências aos romances Memórias Póstumas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Apesar deste deslize conjugal, fica claro o amor pela esposa, Carolina Augusta, mesmo após ler o seu diário: "Aqui dou-te um conselho: nunca leias o diário de quem vive contigo! Mais do que surpresas ou revelações, ele pode conter aquilo que sempre soubeste sem querer admitir."
"Comecemos pelo fim. Como se se tratasse, digamos, de um desses livros do Oriente, que se leem de trás para frente; ou de uma película do novo cinematógrafo, mal colocada no aparelho e projetada ao revés. Não porque me falhe a memória dos capítulos mais remotos da minha vida, mas antes por uma convicção de longa data – a de que a vida de todo homem deveria ser contada às avessas. A razão dessa estranheza reside numa suspeita indemonstrável, porém insidiosa, sobre a própria matéria em questão, à qual só agora, encontrndo-me bem protegido nesta minha trincheira subterrânea, posso dar livre curso. Sempre deconfiei que a explicação dos mistérios contidos na trajetória de um indivíduo se escondesse nas entrelinhas do próprio percurso, ou pelo menos nas de alguns episódios, quase estivesse cifrada por código básico, bastando – quem sabe... – o mero gesto de lê-las ao contrário para entender o que de fato querem dizer. Por vezes, a verdade está diante dos nossos olhos, qual um filho ilegítimo, e não conseguimos enxergá-la (ou não queremos); por vezes, o simples movimento de colocar diante do espelho um texto incompreensível permitiria ler o significado de suas palavras no reflexo invertido." (pp. 16-7)
De origem muto pobre, Machado de Assis nasceu no Morro do Livramento, Rio de Janeiro, e praticamente não recebeu um ensino formal, filho de um descendente de negros alforriados e de uma portuguesa da ilha de São Miguel, precisou vencer o preconceito racial e social em um processo de "embranquecimento" para que pudesse ganhar espaço nos meios literários. Sua condição de saúde era muito precária por conta das crises de epilepsia: "Não era segredo para ninguém, ainda mais no meu estreito círculo de amigos, que eu sofria 'crises de ausência'. Acostumei-me a chamar assim uma série de convulsões que me acometiam à traição, em lugares públicos ou em casa, só ou em companhia; precedidas em geral por náusea, dores e formigamento dos membros. Vinham de longe essas minhas ausências. Desde a infância, já não me custa admitir."
"Sobre essa questão, eis aqui apenas a verissima verdade: não é que por branco eu me tomasse, branco eu tive de me tornar... E se ao termo 'mulato' houvesse em algum momento faltado carga literária, podemos considerar que o Aluísio de Azevedo resolvera essa questão quase trinta anos antes da minha morte. O ponto é outro: para ter o meu valor reconhecido, eu precisava ser branco! Poderia a fina flor da literatura brasileira cultuar um mulato como seu maior expoente? Venhamos e convenhamos, isso não era possível. Contra todas as evidências da tez, havia que fazer de mim um branco, ou melhor ainda, um grego! E digamos que eu cooperei bastante, fui o mais disciplinado dos pacientes, submetendo-me à operação de embranquecimento com a convicção dos que acreditam beber do elixir da longa vida literária. / Mas isso foi em vida...; agora, na morte, as coisas mudam. Agora, já não há pele. Gregos e troianos, letrados e analfabetos, brancos e mulatos, todos se confundem. Nada disso me interessa mais. Se alguma síntese minha ainda fosse necessária, eu diria simplesmente que fui um amaldiçoado." (pp. 18-9)
Muito mais do que um "romance de deformação" como possa ser chamado ou até mesmo que venha a ser criticado por, de alguma forma, profanar a memória de um dos nossos maiores expoentes nacionais, entendo que o livro é o resultado de uma grande pesquisa sobre o autor e representa uma comovente homenagem ao homem que soube vencer todas as barreiras do seu tempo para criar um legado que norteou a transição do Romantismo para o Realismo na literatura brasileira e hoje é considerado um clássico universal. Uma obra muito recomendada não apenas para os especialistas na obra de Machado de Assis, mas também para o público em geral que somente conheceu alguns de seus romances ou contos durante o período escolar.
"Quem sabe um filho de carne e osso houvesse modificado as coisas? Um filho que herdasse a minha gagueira, as minhas convulsões, as minhas 'ausências', a minha pele escura, os meus pactos excusos, a minha maldição e o meu desespero; um filho à minha imagem e semelhança, que acentuasse os meus defeitos e aprofundasse a minha infâmia. Um filho a quem passar o bastão da minha desgraça e da minha perdição, o legado da minha miséria! Eu bem que quis esse filho, mas não veio. O Diabo sabe o que faz... Então, levei tudo isso para a tumba, como um faraó enterrado junto com seus tesouros e seus pertences mais íntimos."
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