Alê Motta - Minha cabeça dói
Alê Motta tem se dedicado ao gênero de minicontos em suas obras anteriores, exercitando uma técnica que prioriza as estruturas narrativas simples com poucas descrições e informações essenciais para a compreensão da trama e do perfil psicológico dos personagens em breves parágrafos. Neste seu primeiro romance, o minimalismo expresso na concisão do texto continua sendo uma prioridade da autora, o que torna o ritmo de leitura acelerado e difícil de interromper do início ao final, como podemos constatar já no parágrafo de abertura: "Meu pai me levou pra passear naquele carro velho uma única vez, e me abandonou, com o rosto encravado nas ferrragens, depois que capotamos. Não esqueço a dor e o cheiro de bebida. Eu tinha onze anos, hoje tenho dezessete."
O romance é narrado em primeira pessoa por um adolescente que tem cicatrizes no corpo e na alma, testemunha das agressões sofridas pela mãe em um lar disfuncional, ele é abandonado pelo próprio pai após o acidente de carro, passando por sucessivas cirurgias de recomposição facial ao longo de dez meses, um lento processo de aprendizado e transformação: "A mistura dos sulfatos, cloridratos, morfinas e atropinas alterou meu temperamento. Deixei de ser calado pra ser sarcástico." Durante o período em que ficou internado no hospital, a mãe inicia um novo relacionamento, o que desagrada o nosso narrador-protagonista: "Eu comecei a gostar um pouco menos da minha mãe. Eu perdi e ela ganhou. Antes do meu acidente, a gente sempre perdia ou ganhava junto."
"Meu pai me levou pra passear naquele carro velho uma única vez, e me abandonou, com o rosto encravado nas ferrragens, depois que capotamos. Não esqueço a dor e o cheiro de bebida. Eu tinha onze anos, hoje tenho dezessete. / O carro ficava estacionado na frente da noss casa sem garagem e meu pai nunca nos levava pra dar uma volta. Nós queríamos muito, mas ele dizia que eu e minha mãe não precisávamos do carro, bastavam os nossos pés pra andar nas ruas do bairro. Eu era uma criança e ela era uma mulher sem trabalho. Carro era pra ele, homem feito, sujeito cheio de responsabilidades, o chefe da casa. Falava também que a gasolina era muito cara, não fazia sentido andar de carro sem motivo especial. Ele saía no carro sozinho, sempre. Eu nunca consegui imaginar qual era esse motivo especial. E nunca questionei, porque deixar meu pai nervoso não era nada bom. / O dia do acidente foi uma exceção. Ele me chamou pra andar de carro, capotamos e a época mais confusa da minha vida, que já não era uma vida fácil, começou." (pp. 01-02) - Capítulo 1
Depois da recuperação, mãe e filho passam a morar em uma nova casa bem diferente da anterior: "Nossa casa. A casa do preto rico e da branca bonitona. Eu era a última aquisição – o branquelo esverdeado de hospital. Éramos a atração da rua. [...] Depois do acidente, meu contato diário era com esse pai totalmente diferente. Inesperado. O Celso, um preto rico. E pretos ricos eram raridade. Pretos ricos são raridade neste país." Nesta nova fase, apesar das melhores condições de vida, o nosso sofrido protagonista busca entender os motivos que levaram o pai a abandoná-lo nas ferragens do acidente e durante todo o seu período de recuperação no hospital.
"Muitos meninos e meninas eram criados pelas mães no nosso antigo bairro. Os pais eram policiais mortos pelos bandidos. Ou bandidos mortos pelos policiais. / Mas havia um terceiro grupo. Os bêbados. Esses escapavam da morte várias vezes. Viviam cambaleando pelas ruas, levando porradas no boteco da esquina. Em suas casas eram violentos com as suas mulheres e filhos. Meu pai era um deles. Nas calçadas e no boteco, era contador de piadas, tratado como um cara engraçado, e dentro da nossa casa, um cara extremamente violento. Ele usava minha mãe como saco de pancadas. Começava com uma frase de desaprovação, a comida estava sem sal, as roupas estavam amassadas, o pente sumiu e em segundos eram berros. Ele começava a socar, chutar, empurrar, xingar. Minha mãe tentava fugir dele, na nossa casa minúscula, sem sucesso." (p. 32) - Capítulo 7
Neste seu mais recente lançamento, Alê Motta lida com os ingredientes clássicos de um romance ou novela de formação: conflitos familiares, descoberta das paixões e o difícil amadurecimento na transição da infância para a juventude, sempre no seu ritmo narrativo veloz e preciso, diria essencial, no qual não encontramos uma palavra a mais ou a menos, direto ao ponto. Apesar do formato breve, o conteúdo apresenta uma trama criativa e bem desenvolvida com personagens imprevisíveis e de uma fragilidade intensamente verdadeira. Um livro recomendado que consolida o nome da autora no cenário da literatura brasileira contemporânea.
"Ao contrário da minha mãe, as pessoas não ficavam indiferentes. Olhavam pra mim apertando os olhos, mordendo os lábios, levantando as sobrancelhas. / Respondi muitas perguntas sobre a minha cicatriz. Criei várias versões do acidente. Escolhia qual contar pela cara do interlocutor. Pro caixa do supermercado, uma versão resumida. Pro novo professor de matemática que não fui com a cara, uma versão estendida, assustadora. Pra um vizinho rico e antipático, uma versão absurda que envolvia abuso e depressão. / Comecei seguindo as dicas do Jonas. É possível caprichar nas mentiras. Chocar, agradar, angariar simpatia. Os resultados são incríveis quando nos dedicamos a deturpar situações. Não demorou muito e logo eu desenvolvi meu próprio estilo." (p. 27) - Capítulo 15
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