Tatiana Cavalcante - faminTA
O romance de estreia de Tatiana Cavalcante foi publicado pela Editora Patuá com o apoio do ProAC-Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo. A autora utiliza a sua própria experiência como paciente de Transtorno Alimentar (TA), abordando a difícil questão da crueldade do bullying no período escolar que leva frequentemente à insatisfação com o próprio corpo em uma sociedade na qual ser magra é sinônimo de beleza, saúde e sucesso. O processo é normalmente associado aos adolescentes com baixa autoestima que buscam afirmação social, criando uma relação distorcida com a comida, o que pode originar quadros clínicos graves e complexos, tais como a anorexia e a bulimia.
O fato é que sofrer de Transtorno Alimentar não é uma escolha, mas sim uma grave doença mental, com influência biológica, que necessita de tratamento especializado. A protagonista-narradora não é nomeada em nenhum momento como parte da estratégia narrativa da autora em não limitar a abrangência do TA que, de fato, é independente de gênero, etnia, orientação sexual, idade ou classe social. Diversas fases do transtorno são vicenciadas pela personagem ao longo do romance, desde os regimes radicais na adolescência à base de anfetaminas com as sucessivas recaídas, chamadas de efeito sanfona, até os vômitos autoinduzidos ou uso excessivo de laxantes.
"'Noventa e seis quilos!', anunciou o professor em voz alta, enquanto anotava os números em uma ficha. Noventa e seis? Nunca fui boa em matemática, mas deveria ser muita coisa; 'meu corpo equivale a novecentos e sessenta espetinhos do Onofre. vixe, isso sim é comida pra caramba!', pensei na hora. No mais, se ainda me restavam dúvidas sobre o quanto isso representava, os cochichos e risadas dos colegas me certificaram de que era mesmo. Senti o tremendo peso do meu peso revelado pra quem quisesse ouvir. Não achava que poderia existir algo pior do que a forma como alguns médicos de regime me tratavam, mas descobri que sim. A fala do professor me acuou, senti vergonha de ser como eu era. Mas a reação dos colegas me intimidou ainda mais e fiquei me perguntando como seria vê-los rindo de mim daquele jeito pra sempre. Alguém como eu jamais deveria ser vista." (p. 76)
É importante destacar que boa parte da sociedade tende a subestimar a gravidade do TA e dos distúrbios mentais de um modo geral, sendo que muitas pessoas com transtornos alimentares parecem saudáveis, ainda que estejam extremamente doentes. A boina vermelha da capa é uma lembrança da menina que foi abandonada pelo pai em seu aniversário de oito anos, um trauma que originou o vazio a ser preenchido com muita comida. Para ela, desde então, a vida se tornou uma luta recorrente contra o aumento de peso e uma incansável busca por aceitação própria e dos outros: "Emagrecer não só se tornou a solução dos meus problemas, também me concedeu o direito de pertencer a um grupo ao qual a minha versão gorda e feia jamais seria aceita".
"Passei a viver uma dualidade destruidora em relação à comida: a regra era comer cada vez menos, mas quando a vontade batia incontrolável ou quando eu me sentia pressionada por algum fator externo, acontecia algo visceral: eu devorava tudo, absolutamente tudo que estivesse ao meu alcance, se deixasse até o pé da mesa. De madrugada, assaltava a geladeira. Sentia o desejo e julgava o pensamento. Meu comer não era nada seletivo, não sabia o que era prazer, somente operava sem nenhum critério, sem nenhum limite. Eu comia o pão com manteiga, depois o prato de arroz com feijão, o pacote inteiro de bolacha recheada, a caixa de bombom, o pote de iogurte e a fatia de bolo, tudo numa mesma refeição. Minha única solução passou a ser a culpa ácida passando pela laringe. Esses episódios se repetiam várias vezes na semana. Eu faria qualquer coisa pra não voltar a ser gorda faminta. Emagrecer tornou-se minha prioridade, missão, obsessão." (pp. 104-5)
Um livro extremamente corajoso que certamente irá ajudar muitas pessoas a identificar e lidar com este sofrimento silencioso, normalmente escondido pelas famílias e pacientes. Na segunda parte do romance, a protagonista aprende a superar os fantasmas e encontra o seu caminho de superação ao viajar para Madri: "Foram anos demais tentando recolher os cacos enquanto me cortava com todos eles. [...] Fui revisitada pelo caos tantas vezes! O caos da imagem refletida, do número da balança, do desejo reprimido, da mente descompensada, da comida controlada, do corpo – o porta-voz de tudo isso que eu sinto."
"O episódio de quase óbito diagnosticou-me, por tabela, com problemas de saúde de uma adolescência perturbada pelo TA: gastrite nervosa, refluxo gastroesofágico e hérnia de hiato. No mais, o hemograma acusou uma anemia preocupante, a qual me obrigou a seguir um tratamento regrado à base de uma alimentação especial e suplementada. Dessa vez os comprimidos precisavam garantir que a comida não saísse de mim. Minhas refeições passaram a ser monitoradas pela minha mãe e pelos médicos. Quando notei os primeiros quilos a mais, ainda tentei barganhar entre comer ou tomar os suplementos como se um compensasse o outro; 'remédio tem caloria?', eu repetia procurando a tabela nutricional nas caixas e frascos. Tratar o TA também parecia um pesadelo. Eu tinha vontade de sumir, como se deixar de existir fosse a melhor solução e o remédio mais eficaz de todos." (p. 116)
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