Sandro Veronesi - O colibri

Literatura italiana contemporânea
Sandro Veronesi - O colibri - Editora Autêntica - 336 Páginas - Tradução de Karina Jannini - Capa: Diogo Droschi - Lançamento no Brasil: 2024.

O romance "O colibri", publicado originalmente em 2019, venceu o Prêmio Strega de 2020, principal distinção da literatura italiana que Sandro Veronesi recebeu pela segunda vez, a primeira em 2006 com "Caos calmo". Somente Paolo Volponi havia conquistado até então o prêmio por duas vezes (1965 e 1991). Sandro utiliza diferentes vozes narrativas e gêneros, tais como: cartas, documentos, e-mails, chamadas telefônicas e conversas de WhatsApp, de modo não linear, cobrindo um período dos anos setenta até uma década à frente dos dias atuais, para contar a história de quatro gerações da família Carrera. Apesar da experimentação com os gêneros narrativos e os saltos temporais, trata-se de um livro que captura a atenção do início ao final, como referências posso citar "A visita cruel do tempo" de Jennifer Egan e o mais recente "Lições" de Ian McEwan.

O protagonista de "O colibri" é o médico oftalmologista Marco Carrera, mas há um número considerável de outros personagens que ganham espaço na trama: seus pais, Letizia Delvecchio e Probo Carrera, os irmãos, Irene e Giacomo, sua esposa, Marina Molitor, a filha Daniele e a neta Miraijin, assim como a mulher por quem Marco manteve um caso não resolvido por toda a vida, Luisa Lattes. O apelido "colibri" foi dado por sua mãe na infância, pois até os catorze anos era muito mais baixo do que os outros meninos, até que foi submetido a um tratamento à base de hormônios, tendo atingido a altura normal para sua idade. No decorrer do romance, a semelhança com o pequeno pássaro ganha um novo significado, passando a ser não uma referência ao tamanho, mas sim à habilidade de pairar e se manter em meio às inúmeras pequenas tragédias de uma existência.

"Pode-se dizer que o bairro Trieste, em Roma, é um centro desta história como muitos outros centros. É um bairro que sempre oscilou entre a elegância e a decadência, entre o luxo e a mediocridade, entre o privilégio e a banalidade, e, por enquanto, isso é o bastante: é inútil falar mais a seu respeito, pois sua descrição no início da história poderia revelar-se maçante e até mesmo contraproducente. De resto, a melhor descrição que se pode fazer de qualquer lugar é contar o que nele acontece, e nesse está para acontecer algo importante. / Vamos colocar nos seguintes termos: uma das coisas que acontecem nesta história feita de muitas outras histórias se passa no bairro Trieste, em Roma, em uma manhã de meados de outubro de 1999, mais precisamente na esquina entre a Via Chiana e a Via Reno, no primeiro andar de um daqueles edifícios – que, pelas razões mencionadas, não vamos descrever aqui – nos quais já aconteceram milhares de outras coisas. Só que a coisa que está para acontecer é decisiva e, pode-se dizer, potencialmente mortal para a vida do protagonista desta história. Doutor Marco Carrera, diz a placa pregada na porta de seu consultório, médico oftalmologista – aquela porta que, por pouco tempo, ainda o separa do momento mais crítico de sua vida, feita de muitos outros momentos críticos. [...]" (p. 9) - Trecho do capítulo Pode-se dizer (1999)

De fato, Marco Carrera, assim como todos nós, passa por alguns momentos difíceis: traições, doença e morte, principalmente a solidão que nos persegue como seres humanos, mas a esperança permanece, isso me lembra de "O Inominável" de Samuel Beckett e um dos finais mais lindos da literatura: "[...] é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar."

"Dada a idade da menina, pode-se dizer que o surgimento de sua patologia coincidiu com o começo de seu relacionamento com o pai, até aquele dia bastante indefinido, e quem determinou essa coincidência foi a própria menina, com a primeira – provavelmente – resolução autônoma de sua vida. De fato, foi em um ensolarado domingo de agosto, enquanto ele e ela tomavam café da manhã na cozinha da casa de Bolgheri e a mãe tinha ficado mais um pouco na cama, que Adele Carrera comunicou a seu pai que tinha um fio preso às costas. Apesar da idade, explicou isso com muita clareza: um fio partia de suas costas para terminar na parede mais próxima, sempre. Por alguma razão, ninguém o via, portanto, ela era obrigada a estar sempre junto à parede, para evitar que as pessoas tropeçassem ou ficassem presas nele. E quando você não pode ficar junto à parede?, quis saber Marco. Como você faz? Adele respondeu que, nesses casos, tinha de ficar muito atenta, e, se alguém passasse atrás dela e ficasse preso em seu fio, ela precisava girar em volta da pessoa para liberá-la – e lhe mostrou como. Marco continuou a fazer perguntas. Mas todos tinham esse fio preso às costas ou só ela? Só ela. E não lhe parecia estranho? Sim, parecia estranho. [...]" (pp. 79-80) - Trecho do capítulo Um fio, um Mago, três fissuras (1992-1995)

Um romance excepcionalmente bem escrito com alguns capítulos que posso incluir entre as melhores coisas que já li. Alguns exemplos: "Gloomy Sunday" (1981) que marca a morte por afogamento de sua irmã Irene, inspirado pela canção homônima composta nos anos 1930 na Hungria e que se tornou um clássico do jazz, mas carrega a lenda de que, devido à sua tristeza, seria responsável pelo suicídio de inúmeras pessoas. "Shakul & Co." (2012) que mostra o desepero de um pai ao receber um telefonema: "E, por fim, veio. Veio o telefonema que todos os pais temem como se fosse o inferno, porque é o inferno, [...]", um capítulo que narra um sentimento para o qual nem existe uma palavra na maioria das culturas, na língua hebraica, shakul, proveniente do verbo shakal, que significa justamente "perder um filho", e no árabe, thaakil, com a mesma raiz, e em sânscrito, vilomah, literalmente "contrário à ordem natural". 

"Brincadeira ou não, a intenção de Probo foi descartada pelo diagnóstico emitido três semana depois, em uma chuvosa sexta-feira de novembro, com base na biópsia dos tecidos retirados durante a colonoscopia, realizada depois da descoberta do sangue oculto nas fezes em um exame de rotina. Adenocarcinoma. Adeus, Londres. Adeus, Marylebone. Era o fim do mundo, sim, mas diferente do entendido por Joanna Southcott. Por sua vez, começou a conhecida via-crúcis, orgulho da medicina contemporânea, que libera o doente do arcaico mecanismo veredito-execução e o obriga a um lânguido, por vezes longo, por vezes muito longo caminho rumo ao fim – uma via-crúcis, justamente, marcada por suas árduas estações, com frequência bem mais de catorze. Descoberta do mal. Biópsia. Resultado da biópsia. Consultas a especialistas. Indecisão entre cirurgia e tratamento. Escolha da cirurgia ou do tratamento. Êxito encorajador da cirurgia ou dos primeiros ciclos do tratamento. Descoberta de que, mesmo tendo escolhido a cirurgia, a certa altura é necessário o tratamento. Efeitos colaterais do tratamento. Mudança do protocolo de tratamento. Descoberta de que, mesmo tendo escolhido o tratamento, a certa altura é necessária a cirurgia. E assim por diante... Todos conheceram esse caminho, direta ou indiretamente, e quem não o conheceu o conhecerá, e quem não o conheceu nem o conhecerá é um predestinado ou o mais desventurado dos seres humanos." (pp. 205-6) - Trecho do capítulo Via-crúcis (2003-2005)

Literatura italiana contemporânea

Sobre o autor: Sandro Veronesi nasceu em Florença em 1959. Considerado um dos mais importantes romancistas italianos das últimas décadas, assina mais de vinte obras, entre elas romances, contos, poemas e peças jornalísticas. Ganhou o Prêmio Strega em 2006 com o romance "Caos calmo" (Rocco, 2007) - traduzido em vinte países e vencedor também dos prêmios Fémina e Méditerranée - e em 2020 com este "O colibri".

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Comentários

Ana Raja disse…
Gosto muito de ler as suas resenhas. Já tinha me interessado por esse livro, e agora,tenho a certeza que preciso Lee.
Alexandre Kovacs disse…
Oi Ana, grato pela visita e comentário! Depois me conta se gostou do livro.
Sandra Godinho disse…
Instigada pela resenha, iniciei a leitura. O primeiro capítulo nos faz mergulhar de cabeça na narrativa, depois senti perder a potência. Ainda estou no meio da narrativa. Não li os capítulos mais primorosos citados na resenha. A conferir!
Alexandre Kovacs disse…
Oi Sandra, depois me conta o que você achou!

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