Lucas Verzola - Infelizes à sua maneira

Literatura brasileira contemporânea
Lucas Verzola - Infelizes à sua maneira - Editora Incompleta - 94 Páginas - Capa, projeto gráfico e tratamento de imagens: Letícia Lampert - Posfácio de Felipe Charbel - Lançamento: 2024.

Lucas Verzola nos surpreende ao apresentar esta espécie de coletânea de contos em formato de álbum fotográfico. O autor selecionou fotos antigas do próprio acervo familiar associando a cada retrato uma narrativa curta ficcional, um verdadeiro achado literário a começar pelo título, inspirado na célebre frase inicial de Anna Kariênina de Tolstói: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira". A ideia do livro-álbum nasceu de um projeto mantido pelo autor entre 2018 e 2020 chamado Álbum de Família no qual uma página do Facebook, um blog e uma newsletter foram criados por Lucas que publicava quinzenalmente um texto inspirado livremente pela fotografia antiga, algumas tiradas há mais de um século.

Uma ideia criativa que foi bem executada, principalmente pelo resgate de um Brasil nem sempre verdadeiramente representado nos livros de História e as histórias que nascem do contraste entre o caráter memorialístico das imagens e a interpretação puramente ficcional do autor. Destaque para o cuidado da editora com o acabamento gráfico deste lançamento e o posfácio de Felipe Charbel, elementos que valorizaram ainda mais a obra. No entanto, a melhor definição vem do próprio Lucas Verzola quando iniciou o projeto, sempre com o humor refinado que é uma característica do seu estilo: "recomendado para quem procura exorcizar fantasmas, é portador de fobia de laços consanguíneos, vem de linhagem torta, tem ascendência questionável ou quer vingar sua estirpe."

Amor de primo

O cachecol a tia Dalva trouxe de Campos do Jordão, que é coisa de menina assim tão elegante. Os sapatinhos a mãe comprou no Mappin da rua São Bento. Guardou na caixa perolada e pôs embaixo da cama, pra não gastar. Só que tinha missa todo domingo, e o pai vinha olhando feio. Mas antes de vestir os xodós do guarda-roupa, levou escondida um banquinho ao banheiro. Passou a chave na porta e se alguém insistisse em bater é que o estômago doía um pouco, mas era o coração. No reflexo do espelho, as gotinhas de suor amontoadas no buço. Passa o papel higiênico e nada, ainda se enxerga tão errada. A franja quase no olho precisa de um corte. As bochechas tinham de ser tão rechonchudas? A barriga é só puxar um pouquinho pra dentro da calça que a cinta dá conta. Queria ser certa. Queria que pra tudo no mundo existisse uma cinta e, só de prender um pouquinho a respiração, a gente pudesse esconder o medo que nem a barriga. Amor de primo é outra coisa.

Acabou o serviço?

Acabou o serviço? É o que parece. Onde já se viu parar almoço no meio pra tirar retrato? As panela tudo no fogo, e a gente que nem bobo no quintal. Até pose mandaram a gente fazer. Só porque vai sair de casa, ficou com essa mania de registrar, registrar. Diz que é pra quando bater saudade. Do jeito que fala, parece até que vai voltar pra Itália. Bom Retiro é logo ali, só cruzar o trilho. Mas a rotina da casa toda tem que mudar só porque a bonitona quer. Acho que a única que se importa sou eu. No final das conta, a família sempre faz tudo do jeito dela. Até casar antes das irmã mais velha. Caçula desaforada. Dizem que é precoce. Precoce... Pra mim é sem-vergonhice, isso sim! Se bobear, tá casando grávida e ninguém me contou, porque eles sabe que eu não ia aceitar. Retrato, casamento. E quem cuida da mamma? Quem cuida das panela?

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Lucas é Verzola, mas também Oliveira Campos e poderia muito bem ter sido Palumbo, Bueno, Bernardi, Gentile, Alicce, Sperti, Grandi: sobrenomes sonegados que conseguiu rastrear. Além de escritor, é arqueólogo de memorabília e uma espécie de guardião das fotografias da família. Sua preferência pela ficção – que o fez largar o curso de história para se formar em direito – opera como força motriz deste livro, em que a fidedignidade dos retratos tem sua tenacidade confrontada por realidades imaginadas. Em vidas passadas, publicou os livros de contos "A última cabra" (2019) e "Em conflito com a lei" (2016), ambos pela editora Reformatório, e "São Paulo depois de horas" (2014), pela editora Patuá.

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