Hugo Almeida - Vale das ameixas
O romance de Hugo Almeida não subestima a inteligência do leitor ao apresentar as confissões e reflexões do personagem principal, o polonês Harley Tymozwski, apelidado como Timo, ao longo de uma vida como professor de literatura exilado no Brasil. De fato, o autor adota uma estrutura fragmentada e de cunho metalinguístico, não linear no tempo, com múltiplas vozes narrativas, além de referências culturais das áreas de filosofia, literatura, pintura, música, cinema e teatro, sempre comentando sobre o contexto sociopolítico e histórico, no Brasil e no mundo, por exemplo a ocupação nazista da Polônia e o genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, assim como o período de repressão militar e da guerrilha do Araguaia em nosso país.
Percebendo a proximidade da morte, o solitário e nostálgico Harley, tendo como companhia apenas a empregada Benedita e o cão Bóris, revisita, normalmente de forma bem-humorada e irônica, os inúmeros encontros e desencontros amorosos com as mulheres com as quais conviveu. Na verdade, as descrições podem estar sendo feitas em primeira pessoa pelo próprio protagonista; por meio de cartas da esposa Rachel/Biela, judia nascida na Polônia; por comentários das mulheres que conheceu no Brasil (Laura, Núbia, Loren, Éden, Laís/Celeste, Alzira/Piedade, para citar somente algumas) ou dos filhos Túlio e Zacarias que editam alguns trechos das memórias. Portanto, o início de cada capítulo ou fragmento é sempre uma surpresa para o leitor.
"Coração velho também vibra. Ia escrever berra. Coisa antiga. Pulsa? Óbvio. Morde. Quanto tempo faz que não se mexe assim? O calendário não registrou. A memória. Ah, a memória. Perto dos 100, quase de costas para o mundo, é ela que me deixa vivo. Livre de grilhões, exceto a bênção da paixão, agora tudo posso contar. Deito nesta brochura sem pauta, em letras trêmulas da idade, não de temor, o que está cravado em mim. Alguém encontrará o caderno daqui a breves anos. Meu adeus. Presente dela. Faça um diário, professor. Sim, fui à igreja – Como não iria? Laura, Laura, Laura. Sim, sim. Luz, poema vivo. Toda fantasiada, me disse semanas depois, voz que belisca a alma. Gotas de mel no lábio de abelha-beija-flor. Ligeiro, terceiro, quarto? Último. Viajou. Há beijos sem memória, quase todos. Poucos, os três ou quatro que se confundem, atravessam noites, países, décadas – licor. Retorna, vivo, aquele doce período. Disse feliz, rubra, que era o melhor homem que existia. Ele. Como podia afirmar isso? Ciúme, quase raiva. Quantos conhecia? Ela tocava piano. Pareciam de balé seus passos. Mais leve que brisa, ela. Ave, borboleta, esperança. Eu temia aquele caminho, aquela escolha. Algo não batia. Certa vez, toquei suas mãos, música nascia ali, a pretexto de ajudá-la a pegar um volume na estante alta, quase um abraço por trás. Tremeu um pouco. Arrepio. Queria mesmo era tocar os seios. Tive coragem? Recuaria? Os mais lindos que possam existir. Conheci 33 ou 35. Sim, um número ímpar. Não estou gagá. Uma delas foi operada. Doce colina ao lado de planíce tatuada no centro (olho manso, sereno, faminto), alta sensibilidade, as duas. Mas impossível a espanhola que eu tanto apreciava." (p. 13)
Ao longo do romance são feitas citações a grandes escritores e artistas brasileiros e internacionais, principalmente os poloneses, normalmente obrigados ao exílio de sua terra natal (com os seus assustadores agrupamentos de consoantes, difíceis de pronunciar para os leitores brasileiros), caso da poeta, prêmio Nobel de Literatura de 1996, Wislawa Szymborska; dos cineastas: Andrzej Wajda e Roman Polanski; do artista plástico naturalizado brasileiro Frans Krajcberg; do ator e diretor de teatro Zbigniew Ziembinski, também radicado no Brasil e até mesmo do compositor Frédéric François Chopin, nascido na Polônia e radicado na França.
"Sono, sonho – romance. Uma arquitetura, não decoração interna. Gente, personagens – nós. Alguma virtude, mais vícios. Literatura, pássaro livre. Nós de nós. Como desatar? É possível? Preciso? Romance não é outdoor: olhou, entendeu. Partida de xadrez também não. Cintila significados. Uma história da qual o leitor deve participar, navegar no texto e descobrir as elipses, o que o autor disse, mas não escreveu. História que cative e convença. Quase como a própria vida. Thomas Mann emprestou um romance de Kafka a um certo Albert Einstein, que o devolveu: 'Não consigo acompanhar; o espírito humano não é tão complexo'. Outra face da relatividade. Onde, quando? Ecos da terra. O próprio K. lembrou a Milena uma madrugada memorável de Dostoiévski. Ele escrevia seu primeiro livro, Pobre Gente, morava com um amigo literato. Como se chamava? Grigoriev. O rapaz via os manuscritos na mesa do jovem autor (ainda não tinha 25 anos), mas só o leu quando ficou pronto. Encantou-se e levou o texto a um crítico conceituado, o poeta Aleksandr Nekrassov, sem Dostoiévski saber. Às três horas de uma madrugada, bateram à porta do novo escritor. Eles entraram no quarto, abraçaram e beijaram Dostoiévski. Nekrassov não o conhecia e o chamou de A esperança da Rússia. Conersaram durante umas duas horas sobre o romance. Amanhecia quando se despediram. Dostoiévski, debruçado na janela, os vê indo embora e não se contém: chora. E pensa Que amigos maravilhosos. Como eles são nobres e bons. Sou tão vulgar diante deles. Ah, se pudessem me conhecer de verdade. Ainda que eu o dissesse, não acreditariam.Dostoiévski sempre considerou essa a noite mais feliz que viveu." (pp. 123-4)
Hugo Almeida nos surpreende com a construção deste romance original, tanto na forma quanto no conteúdo. Uma obra rara na cena contemporânea nacional e internacional e que certamente irá demandar alguma bagagem cultural prévia ou pesquisa complementar para o completo entendimento. Apesar da complexidade, uma leitura prazerosa e muito recomendada para todos que amam a vida e a arte, posso garantir. Peço ajuda ao texto de apresentação de Whisner Fraga que resume bem a questão: "Benditos e malditos os frutos do ventre da memória [...] Há tantos filtros, tantas intercorrências, tantos ruídos nestas confissões, que o próprio narrador se dilui diante do extravasamento de uma nova consciência única e, paradoxalmente, múltipla."
"Onde procurar as chaves de um romance? Nele mesmo. Um texto traz a memória da cultura em que se insere, estou enganado, Saussure (*)? Somente a obra – a obra, nada além dela –contém e justifica o que a ela se liga. Nem mesmo o autor poderá explicar isso ou aquilo. A narrativa traz a sua medida própria. Concluído o romance, o escritor deveria morrer. Ou calar-se. O livro segue, livre o seu caminho. Agora é com o leitor. / Que exagero, Ferdinand! [...] Mais duas palavras sobre romance, enquanto não morro. Uma narrativa não é detentora de significação, mas deflagradora de significações. O título de um romance – essa máquina complexa que não nasce de ovo nem útero – deve misturar as ideias, e não orientá-las. Escrever, triunfo da liberdade; solidão fraterna." (p. 204) - (*) Citação a Ferdinand de Saussure (1857-1913), linguista e filósofo suíço.
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