Simon Schama - O Poder da Arte, Parte 3 - Rembrandt
Autorretrato - Detalhe, 1659 (National Gallery of Art, Washington) |
"Nenhum pintor mapeou fisionomias — e a ação do tempo impiedoso sobre elas — com tanta avidez e com tanto gosto pelo detalhe. Outros artistas, por uma questão de tato, hesitariam em ressaltar um pé de galinha ou um nariz abatatado. Já Rembrandt, avesso à cosmética, acreditava que tais traços expressavam a nobreza moral do modelo em vez de comprometê-la. A seus olhos compassivos, nada era grotesco. Quando ele pintava nus, ele compunha sinfonias de celulite. Quando examinava a multiplicidade de rostos que era a Amsterdam mercantil, via apenas indivíduos. Descobrir determinada personalidade humana sempre significava enxergar além da máscara. Assim, ninguém observou com maior atenção a pálpebra caída de um octogenário, o retesamento de um cabelo preso sob uma touca de linho, a leve oleosidade de um narigão viçoso, as dobras de uma papada ou a aquosidade de uma córnea. Nenhum pintor tornou esses rostos comuns tão presentes fisicamente." - Simon Schama - O poder da Arte (pág. 150)
Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669) era impiedoso até mesmo com seus autorretratos como podemos constatar no detalhe da imagem acima, na época com 53 anos. No entanto, quando o jovem Rembrandt chegou em Amsterdam, por volta de 1630, a cidade já se transformara em um poderoso centro da economia global, fazendo negócios que envolviam artigos das Índias Orientais ao Brasil e, dessa forma, aperfeiçoando cada vez mais o seu domínio naval.Toda essa riqueza era um atrativo para Rembrandt e outros jovens artistas que procuravam atender à demanda de arte local pela "representação sensual dos prazeres e perigos do mundo terreno" uma vez que a reforma calvinista praticamente eliminara o culto às imagens religiosas na Holanda. Rembrandt soube aproveitar o bom momento do mercado produzindo principalmente retratos por encomenda.
Ronda Noturna, 1642 (Rijksmuseum, Amsterdam Holanda) |
O quadro "Ronda Noturna" foi uma encomenda feita em 1642 pela corporação de arcabuzeiros de Amsterdam para decorar o salão cerimonial no primeiro andar da sede da corporação. Quando Rembrandt iniciou o trabalho, quatro dos sete quadros encomendados a diversos artistas já estavam instalados. Em geral, todos respeitaram as regras básicas dos retratos coletivos de época, ou seja, reproduzir fielmente as feições dos clientes pagantes (uma média de cem florins por oficial) e mostrar um ou dois acenando ou conversando. O capitão Frans Banning Cocq e o tenente Willem van Ruytenburgh (de amarelo) aparecem em destaque. Rembrandt não obedeceu as fórmulas tradicionais e reconcebeu a cena como um drama de ação ou uma pintura histórica.
No lugar de distribuir as figuras numa linha paralela ao plano, Rembrandt mudou o eixo, de forma que o movimento ocorre não de um lado para o outro, mas do fundo para a frente. A aparente disposição aleatória dos oficiais no quadro, na verdade obedeceu a uma disciplina geométrica que considera os eixos horizontal, vertical e diagonal. As figuras apresentam pouca nitidez no contorno, priorizando os contrastes de cor e a luz de acordo com a escola barroca, influência de Caravaggio. Apesar de ser considerado hoje uma das obras-primas da pintura, o quadro não atendeu às expectativas dos clientes por não ser possível a identificação de alguns oficiais com clareza, fato que provocou o atraso no pagamento do trabalho.
A menina que aparece iluminada em destaque é uma personagem misteriosa e destoa do grupo de milicianos. Muitos críticos a consideram como uma representação de Saskia van Uylenburgh (1612-1642), primeira esposa do pintor, que faleceu prematuramente de tuberculose no ano em que a tela foi pintada. Durante os oito anos de vida conjugal, Saskia foi retratada em inúmeras telas. A partir da morte da esposa as obras de Rembrandt se tornam mais sombrias e ele passa por diversas dificuldades financeiras devido aos gastos que sempre teve ao comprar obras de arte, impressões e raridades, o que ocasionou finalmente em 1656 um acordo nos tribunais para evitar sua falência, resultando na venda da maioria de seus quadros e sua imensa coleção de antiquidades.
A Conspiração dos Batavos sob Claudius Civilis, 1666 (National Museum, Estocolmo) |
Simon Schama destacou "A Conspiração dos Batavos sob Claudius Civilis" de 1666 como a obra marcante na tentativa de recuperação da imagem pública (e financeira) de Rembrandt que, no final da vida, "havia perdido tudo: crédito, propriedade, as bênçãos dos poderosos". Infelizmente o quadro foi rejeitado e Rembrandt teve que sacrificar quatro quintos da obra para reduzir o tamanho original, planejado para um espaço compatível com a grande sala cerimonial dos cidadãos. Em 1734, 65 anos depois da morte do pintor, a tela foi finalmente comprada por sessenta florins, o preço de uma bela cama. Mais uma boa história, nem sempre destacada nos livros de arte e que Schama descreve com muita propriedade no trecho abaixo.
"E então, como para contrariar seus críticos, o velho réprobo teve a oportunidade de mudar tudo. A elite de Amsterdam, que nesse momento era a cidade mais rica do mundo, precisava de uma pintura histórica monumental para a nova sede da prefeitura, um grandioso edifício branco. Sua primeira escolha, Govert Flinck, morrera inesperadamente. Assim, restava-lhe o antigo mestre, Rembrandt van Rijn, que em seus bons tempos pintara cenas históricas de tirar o fôlego (...) A obra integraria uma série de quadros sobre a história dos batavos, remotos ancestrais dos holandeses. (...) A tela de Rembrandt seria a mais importante pois focalizaria o líder batavo Claudius Civilis no momento em que levou seus compatriotas a jurar que dariam a própria vida pela liberdade da pátria. (...) Para o pintor arruinado era uma cartada decisiva. Todo mundo conhecia sua audácia, sua rudeza, sua lamentável imunidade às sutilezas do decoro pessoal e profissional. Nem por isso os figurões locais estavam preparados para o que Rembrandt lhes entregou. Talvez achando melhor passar por um constrangimento que encarar uma parede vazia, penduraram o quadro na prefeitura e ali o deixaram por alguns meses, em 1662. Até que não aguentaram mais olhar para aquela coisa tosca. Tomaram uma decisão. Afinal, não queriam a tela; lamentavam muitíssimo, mas assim era. Tiraram-na da parede. Enrolaram-na e devolveram ao autor — sem lhe pagar um centavo por seus esforços. - Simon Schama - O poder da Arte (pág. 134 e 136)
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