Bernardo Carvalho - Simpatia pelo Demônio

Literatura brasileira contemporânea
Bernardo Carvalho - Simpatia pelo Demônio - Editora Companhia das Letras - 240 Páginas - Lançamento: 23/08/2016.

Confesso que o título deste último lançamento de Bernardo Carvalho, com sua óbvia associação ao famoso hit dos Rolling Stones, me induziu a expectativa de uma leitura leve, sem compromisso, em um clima de Rock'n Roll, o que não seria muito compatível com os textos anteriores do mesmo autor. Na verdade, o próprio Bernardo Carvalho alerta logo de início na seguinte nota: "embora o título do romance faça menção à canção dos Rolling Stones 'Simpathy for the Devil', aqui o sentido é outro. 'Simpathy', em inglês, quer dizer 'consideração'. No título deste romance, a simpatia pelo demônio é simpatia mesmo", ainda assim o leitor não tem dados suficientes para entender com que tipo de livro está se envolvendo. O demônio citado não é assunto para adolescentes rebeldes, ele é o mesmo que ronda as obras de grandes autores da literatura, tais como Marquês de Sade e Georges Bataille, assim como outras referências eruditas, sempre aplicáveis ao objetivo da narrativa, no teatro, poesia, música e pintura. Neste contexto foi muito feliz a escolha da imagem da capa que reproduz um detalhe peculiar do quadro "São Cristovão carregando o Menino Jesus" (1490) de Hieronymus Bosch, museu de Boijmans, em Rotterdam, descrito em uma passagem do romance.

Bernardo Carvalho lida com temas atuais, misturando em sua trama a paixão homossexual na meia-idade, a violência em sua formas diretas (da insegurança no Rio de Janeiro aos atentados terroristas no Oriente Médio) e indiretas (influência do Mal nas relações afetivas). Tudo isso em um cenário globalizado que se alterna entre Nova York, Berlim, México, Oriente Médio e Rio de Janeiro. O protagonista, Rato, é casado, tem uma filha e é funcionário há vinte e sete anos de uma agência humanitária em Nova York, na qual se especializou em zonas de conflito interétnico e inter-religioso. Aos cinquenta e cinco, ele vê a sua vida profissional e amorosa ser destruída aos poucos pelos efeitos de uma paixão avassaladora, iniciada três anos antes, por um mexicano mais jovem, estudante de neurociência em Berlim e apelidado por ele de "chihuahua" (assim mesmo em minúscula) devido à sua baixa estatura e país de origem.

A alcunha de Rato, por sua vez, foi inventada pelo chihuahua e constatamos com o progresso (se é que podemos chamar assim) da relação entre os dois, que o Rato nada mais é do que uma presa ou cobaia para o amante que encontra terreno fértil para suas experiências na insegurança de meia-idade do Rato, um homem que está passando por uma crise ao chegar em um ponto da existência em que ele acha que há poucas chances de refazer as suas escolhas. Outra coisa que fica clara para o leitor é que o chihuahua é a própria representação do demônio, de baixa estatura, um mau hálito "que parecia vir das profundezas do inferno", promíscuo e manipulador. No entanto, nada é tão simples na literatura de Bernardo Carvalho, o chihuahua pode ter a sua culpa absolvida pela tese do antropólogo francês René Girard que norteia as pesquisas de neurociência do chihuahua, "o desejo é sempre imitação do desejo do outro".

A parte inicial da narrativa é menos psicológica e começa veloz, em clima de alta tensão, quando o Rato é chamado na sala do diretor da agência humanitária para receber uma missão nada simples, viajar para uma zona de guerra no Oriente Médio (muito provavelmente a Síria, embora não fique explícito no texto) para pagar o resgate de um refém a um grupo terrorista. Durante a missão praticamente suicida que só é oferecida ao Rato devido à sua decadência pessoal e profissional, ele relembra trechos do passado. Na verdade, ele parece encontrar muito mais facilidade em lidar com a violência no campo profissional do que no terreno afetivo. No trecho abaixo o autor destaca como os meios utilizados pelos radicais religiosos conduzem a um estado de guerra permanente onde é praticamente impossível uma solução a curto prazo.
"A facção à qual ele devia entregar o dinheiro era mais ou menos como todas as outras, embora fosse até então desconhecida. A guerra se resumia a pequenos avanços e recuos na disputa por território, com regras de conduta baseadas na força que o nome de Deus vinha celebrar. Bastava conquistar algumas centenas de metros em território inimigo para se considerar o escolhido de Deus. É lógico que o escolhido de Deus variava muito no decorrer dos dias. Deus era justo. E tinha Deus para todo mundo. 'Deus' era a palavra mais ouvida quando os objetivos pareciam dúbios, quando o soldado fraquejava, quando começava a duvidar. Era sempre o nome de Deus que ele invocava para se resguardar das tentações do demônio e da hesitação, para abandonar os maus pensamentos e seguir em frente, matando e destruindo tudo o que não estivesse de acordo com as normas do mundo que eles e os seus pretendiam criar sobre a Terra quando afinal vencessem. Com esse fim, torturavam, estupravam, degolavam, apedrejavam e fuzilavam. Nem sempre nessa ordem, porque alguns, no desespero da fúria, ainda encontravam tempo para violar os cadáveres dos homens e mulheres que acabavam de matar." (Págs. 29 e 30).
O Rato é autor de uma tese de doutorado sobre a violência que se tornou famosa nos meios acadêmicos. Um tema pelo qual é obcecado, ele acha que "a paz é um estado temporário de exceção; é o cansaço da guerra". O trecho abaixo, que tem a marca da originalidade de Bernardo Carvalho, é colocado como uma espécie de inserção na rotina do Rato em zonas de guerra no exterior e descreve um interesse genuíno do protagonista pelo efeito da violência na nossa linguagem do dia a dia e focando no Rio de Janeiro (será que o Rio se tornou uma zona de conflito semelhante a outras regiões da África e Oriente Médio?), não deixa de ser um texto muito interessante para reflexão, recomendo a leitura com atenção.
"Era natural que, ao voltar, o Rato se surpreendesse com o sentido de algumas palavras que naquele meio-tempo, durante sua ausência, passaram a querer dizer outra coisa, às vezes o oposto do que antes diziam. As inversões de sentido também começaram a intrigá-lo. Começou a prestar mais atenção nelas, sempre que voltava ao Brasil, depois de ser contratado pela agência humanitária e de se mudar primeiro para Berlim e em seguida para Nova York. Ficou muito surpreso, por exemplo, quando 'Sinistro!' passou a servir para exaltar o que se amava, como se nessa associação esdrúxula entre o amor e o horror se intuísse algo familiar, para o qual ainda não havia palavras. Ou quando, um pouco mais tarde, no caso de o amor acabar, seus sobrinhos adolescentes diziam às ex-namoradas insistentes: 'Me erra!', no lugar do ultrapassado 'Me deixa em paz!'. Mas, de todas as flutuações semânticas, nenhuma provocou nele um efeito tão profundo quanto o uso sinistro (na velha acepção em desuso) da expressão 'Perdeu!'. O sentido anterior, prosaico, tinha sido sequestrado pela associação da palavra a situações de violência extrema, letal. De repente, 'Perdeu!' equivalia a uma sentença de morte. O Rato não conhecia nenhum outro caso em nenhuma outra língua em que uma palavra tivesse sido investida de tamanho horror intransitivo. Conjugar o verbo 'perder' no passado, sem complemento e com o sujeito oculto, ambivalente (a um só tempo você e ele, o vivo e o morto, o agora e o irreversível), estava de tal forma associado à morte violenta e inesperada de quem era surpreendido por assaltantes nas ruas do Rio de Janeiro, no trânsito ou em casa, a qualquer hora do dia, que já não era possível ouvir dizer 'Perdeu!' sem esperar um tiro." (Págs. 71 e 72).
Bem, se o tema é pesado, a estrutura do romance não deixa por menos, muito fragmentada e oscilando entre passado e presente, parece ir cercando o leitor aos poucos, sem pressa, em uma espiral obsessiva, principalmente nos dois terços finais que tratam das idas e vindas da relação doentia entre o Rato e chihuahua. Muitas partes são de certa forma repetitivas como uma colagem de textos escritos em épocas diferentes (o que realmente ocorreu segundo entrevistas do autor). Trata-se de um romance difícil que exige concentração e certamente não agradará a muitos leitores, apesar de ter sido bem avaliado pela unanimidade da crítica, mas, de qualquer forma, não há como questionar que foi escrito com coragem e independência, confirmando o nível de maturidade alcançado pelo autor.
"Eu sabia do mal, reconhecia onde estava o mal, combatia o mal profissionalmente, e o mal, por definição, me repelia. Enquanto eu o combatesse, ele estava fora de mim e eu estava imune a ele, fora da sua zona de influência. O mal era só uma ideia, uma abstração com a qual eu podia lidar à distância e entender como uma presença, uma necessidade e um fato, intelectual e profissionalmente. O mal existia, e não podia deixar de existir, mas eu não corria nenhum risco de me envolver com um assassino ou um criminoso de guerra, por exemplo, estávamos sempre em campos opostos. O mal só podia me atingir contra a minha vontade. Em Berlim, descobri que, ao assumir a imagem do meu desejo, havia um mal que eu não reconhecia nem podia combater. Esse mal depende de uma encenação, é claro. É um teatro. A sua fraqueza está nas palavras, porque o sujeito é incapaz de associá-las à verdade. Tudo o que ele diz é falso. Ele acaba se contradizendo por suas ações. (...) Talvez seja só isso o amor, a possibilidade entre um parasita e seu hospedeiro." (Págs. 178 e 182)

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Comentários

Felipo disse…
Acabei de ler! Gostei muito. Livro pertubador, em todos os sentidos. Não conhecia o escritor, comprei pela capa que como você achei belíssima!!
Alexandre Kovacs disse…
Que bom Felipo, fico feliz que tenha gostado! Abs Kovacs

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