Raduan Nassar - Obra completa

Literatura brasileira - Raduan Nassar
Raduan Nassar - Obra completa - Editora Companhia das Letras - 464 Páginas - Lançamento 25/10/2016.

Este foi um ano importante para a divulgação do trabalho de Raduan Nassar no exterior e o seu redescobrimento no Brasil. Após ter sido finalista do Man Booker International Prize com a tradução para o inglês de "Um Copo de Cólera", foi honrado com a premiação mais conceituada da língua portuguesa, o Prêmio Camões de literatura 2016. Toda essa agitação no meio literário não alterou em nada a rotina do autor, que completa hoje 81 anos, vive recluso e se recusa a dar entrevistas desde os anos 1980, após escrever os dois únicos "pequenos" romances que se tornaram clássicos cultuados da literatura brasileira: "Lavoura Arcaica" (1975) e "Um Copo de Cólera" (1978). Raduan Nassar é um escritor que, segundo o júri do Prêmio Camões, "privilegia a densidade acima da extensão", melhor definição com certeza não há.

A Companhia das Letras lançou esta edição definitiva e revisada pelo próprio Raduan em comemoração aos 30 anos da Editora, que traz, além de "Lavoura Arcaica", "Um Copo de Cólera" e "Menina a Caminho", três livros que já faziam parte do próprio catálogo, mais dois contos e um ensaio inéditos no Brasil, acrescidos de fortuna crítica, relação das traduções e adaptações cinematográficas (surpreende o sucesso alcançado nas telas, tratando-se de textos nada fáceis de transpor para a linguagem do cinema). É claro que não há como criticar um lançamento como este, mas o tratamento editorial poderia ter sido semelhante ao da edição comemorativa de "Raízes do Brasil" de Sérgio Buarque de Holanda com uma compilação maior de textos críticos, compatível com a importância da obra.

"Lavoura Arcaica", por exemplo, é um romance que forçosamente merece estar presente em qualquer antologia de literatura brasileira contemporânea, uma narrativa atemporal de múltiplas interpretações e referências bíblicas que não se esgota em uma única leitura (no meu caso, já reli algumas vezes desde os tempos de escola, mas sempre encontro um novo texto em cada experiência). Em um resumo bastante simplório, podemos dizer que é uma espécie de anti-parábola do "filho pródigo" na qual o protagonista, André, se rebela contra as tradições agrárias e patriarcais impostas por seu pai e foge do núcleo familiar para a cidade, onde espera encontrar uma vida diferente da que vivia na fazenda. Ele não consegue alívio para as lembranças da relação incestuosa com Ana e, quando é encontrado em uma pensão por seu irmão Pedro, passa a contar-lhe, de forma amarga, as razões de sua fuga. À medida que avançamos no texto, fica evidente o final trágico que aguarda toda a família após o retorno de André.

Obviamente é impossível escrever aqui uma resenha tradicional sobre as obras de Raduan Nassar, não somente por uma questão de espaço ou competência, mas também porque até hoje elas exercem um impacto tão grande na minha própria apreciação crítica que tenho dificuldade em enquadrá-las (tanto "Lavoura Arcaica" quanto "Um Copo de Cólera") em uma abordagem objetiva. São livros que criaram uma legião de adoradores, um caso único de unanimidade no cenário da literatura nacional, talvez amplificado pelo silêncio posterior do autor. Prefiro deixar aqui um conto. Um presente para os leitores no aniversário de Raduan, que exemplifica muito bem a habilidade única dele em lidar com a tensão narrativa até o final, uma ação desenvolvida por meio de um diálogo sem palavras, utilizando para isso um bloco de anotações (um símbolo do poder de comunicação da escrita), assim como a tentativa de expressão corporal dos personagens para contar uma história de solidão e o fracasso de uma relação afetiva.

Hoje de Madrugada
(Um conto de Raduan Nassar)

"O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali no canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: 'vim em busca de amor' estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: 'responda' ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: 'não tenho afeto para dar', não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, havia até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sobre a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados, dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras, a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula."

Publicado originalmente em "Menina a caminho e outros textos" - Editora Companhia das Letras - Lançamento 1997, Prêmio Jabuti 1998 de Melhor Livro de Contos e Crônicas.

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