Alê Motta - Velhos

Literatura brasileira contemporânea
Alê Motta - Velhos - Editora Reformatório - 136 Páginas - Design e editoração eletrônica: Negrito Produção Editorial - Lançamento: 2020.

Este mais recente lançamento de Alê Motta, uma antologia de narrativas curtas, todas associadas a protagonistas na terceira idade, me lembrou uma passagem de O Animal Agonizante de Philip Roth que resume bem o assunto: "Para aqueles que ainda não são velhos, ser velho significa ter sido. Porém ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo, e a consciência de continuar sendo é tão avassaladora quanto a consciência de ter sido. Eis uma maneira de encarar a velhice: é a época da vida em que a consciência de que a sua vida está em jogo é apenas um fato cotidiano. É impossível não saber o fim que o aguarda em breve. O silêncio em que você vai mergulhar para sempre. Fora isso, tudo é tal como antes. Fora isso, você continua sendo imortal enquanto vive."

Essa sensação de imortalidade enquanto vivemos, ou seja, da importância do tempo presente e não de eventos que ficaram no passado remoto ou ocorrerão em um futuro incerto, parece nortear os microcontos de Alê Motta, que evitam os estereótipos comportamentais normalmente relacionados aos personagens idosos e a um final de vida condenado a limitações físicas e impossibilidades de todo tipo. A grande ideia da autora foi justamente descrever os seus "velhos" simplesmente como pessoas que ainda detêm o controle sobre os próprios destinos.

O leitor certamente irá se surpreender com uma técnica muito original que transforma as estruturas dos contos em formas ainda mais breves e urgentes, passando informações essenciais para a compreensão da história e do perfil psicológico dos personagens em poucos e curtos parágrafos (ler o exemplo abaixo do conto Herança sobre o malvado e inconveniente avô). A condução das narrativas é feita com segurança e sempre com um tom bem-humorado. Essas características reunidas fazem com que a leitura seja veloz e prazerosa.

É impossível não relacionar o tema do livro ao momento que vivemos, uma época de incertezas na qual os velhos sofrem os maiores impactos da pandemia e, isolados e solitários, se transformaram tão somente em um grande grupo de risco, contudo sabemos que a vida não pode se restringir a isso. Uma outra citação de um famoso velho mestre da literatura, Jorge Luis Borges, nos fornece inspiração e força para superar as dificuldades: "A velhice pode ser o nosso tempo de ventura. O animal está morto, ou quase morto. Restam o homem e a alma."


Herança
(um conto de Alê Motta)

Meu avô é um velho inconveniente que faz todas as perguntas que não devia fazer nos eventos familiares.
     Além de fazer perguntas medonhas, ele me encara e comenta que eu engordei, afirma que minha amiga é sapatão, que eu nunca vou arrumar emprego com o curso que faço na universidade, mas tudo bem, porque sou um fracassado igual ao meu pai e fala isso dando aquela risadinha sarcástica de quem está determinado a se meter.
     Meu avô consegue azedar qualquer reunião familiar. Ele começa discussão, ofende. Zomba, magoa. A todos.

Ele tem olhinhos azuis, cabelo todo branquinho, é gorducho e caminha pulando. Quem olha de longe vê um velho fofo. Quem convive de perto está louco pra ir ao seu funeral.

     Ele maltrata a vovó. Chama de lesada, define as roupas que ela deve usar e onde pode ir. Se e quando pode ir. E com quem. Joga o prato no chão se a comida não está do jeito que ele quer. Ela não reage.
     Ele espancava os filhos quando pequenos – meu pai e meus tios. E agora que os filhos estão adultos, sempre se dirige a eles com sarcasmos ou palavrões.
     Ele nunca nos abraçou. Me chama de Breno e meu nome é Bruno. A Carla ele apelidou de Saco de Banha!, ela é minha prima complicada com o controle de peso. Já tentou se matar, é depressiva. Minha tia fica arrasada. Meus primos gêmeos ele chama de "os dois" e outro primo, o Gil, de "o menino". A minha prima Cássia, eita!, essa ele ignora. Tem tatuagens e piercings, para ele não existe. Ela diz – Olá avô! Ele vira a cara.

Estamos na delegacia. Meus pais, tios, tias, primos, primas e vovó. Depois desse ridículo e desprezível almoço de natal. Vovó é a única que chora e repete Tadinho, tadinho.

     Meu avô nunca mais escarnecerá de ninguém. Foi esfaqueado, enquanto dormia, após o almoço, com a faca nova de cortar o peru. Durante o almoço ele ofendeu, zombou, e xingou a todos.
     Impressionante sua capacidade de humilhar, menosprezar e detonar. Meu avô era brilhante na maldade.

Somos muitos e somos todos suspeitos, mas o delegado já ganhou uma graninha e semana que vem todos ficarão sabendo da tentativa frustrada de assalto. E comentarão, impresionados, da valentia do meu avô, que sozinho no quarto, reagiu. O resultado final foi que, infelizmente, ele não resistiu aos ferimentos na luta feroz, corpo a corpo com o marginal.

     A vida seguirá. E a maldade da minha família, que era só do velho, agora está em todos nós.

Sobre a autora: Alê Motta nasceu em São Fidélis, interior do estado do Rio de Janeiro. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia 14 novos autores brasileiros, organizada pela escritora Adriana Lisboa. É autora de Interrompidos (Editora Reformatório, 2017).

Comentários

sonia disse…
Uau!!! Tem estilo para contar uma história. Esses velhinhos malvados existem sim. Lembro-me de um filme americano, onde uma velhinha má andava nas calçadas do bairro a pisar as flores dos canteiros. Eu conheci uma velha mais ou menos assim. Não pisava em canteiros mas pisava no coração das duas filhas.
Alexandre Kovacs disse…
Ótimo Sônia, essas velhas malvadas poderiam ser excelentes personagens para o livro! Grato pela visita e comentário. Abs

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