Luiz Eduardo de Carvalho - Quadrilha

Literatura brasileira contemporânea

Luiz Eduardo de Carvalho - Quadrilha - Editora Patuá - 260 Pág. - Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação de Leonardo Mathias - Lançamento: 2020.

Neste seu mais recente lançamento, depois do criativo romance epistolar Xadrez (Editora Patuá, 2019), no qual dois jogadores-personagens trocam cartas com lances de uma partida que dura seis anos, cobrindo o período coincidente com o final dos governos militares e o início da transição para a abertura política no Brasil, Luiz Eduardo de Carvalho apresenta desta vez um romance de formato mais tradicional, contudo também com um contexto histórico e algumas peculiaridades narrativas.

A cidade de São Paulo e suas transformações ao longo do tempo, assume um papel de protagonismo neste livro, desde a expansão da cafeicultura na segunda metade do século XIX, passando pela chegada dos imigrantes e a fase de industrialização e crescimento econômico no século XX, até a confusa situação atual, época de estagnação e indefinição política. Todas essas mudanças resultaram na gente simples da Vila Tupi, um grupo de famílias de classe média morando em "oito decadentes e reformados sobrados nos quais aconteceram tantas histórias que nenhuma escrita daria conta de narrar".

Em Quadrilha, toda a ação ocorre em um único dia, 24 de junho de 2019, festa de São João, quando "pulamos a fogueira do antigo paganismo celta em nome de um santo cristão", um exemplo, entre muitos, do sincretismo tão característico de nossa cultura, cada vez mais ameaçado pelo preconceito e intolerância religiosa. Na organização para a noite de comemorações, que acontecerá na pequena Vila Tupi, como todos os anos, familiares e amigos alternam o foco da narrativa em cada capítulo, revelando aos poucos uma rede de interesses e relacionamentos que fica clara aos poucos até o final que reserva algumas surpresas.

A expectativa para a festa de São João deste ano é particularmente maior porque na edição anterior houve uma conturbada discussão política que terminou em pancadaria geral com a "evaporação do bom-senso" entre os presentes, após o controverso impeachment da presidenta, fato avaliado por muitos como golpe, a prisão do ex-presidente e os primeiros meses do "novo governo brasileiro que, empossado há seis meses, ainda se apresentava hesitante no tocante às resoluções fundamentais e somente destemido em decretos polêmicos, como o da ampliação da posse de armas [...], num cenário em que todos os direitos conquistados estavam à mercê de arautos da barbárie que se instalaram nos ministérios e repartições do Planalto Central e repetiam sandices intermináveis nos microfones da mídia nacional e mundial."

É curioso como o autor construiu a estrutura do livro com dezenas de personagens e narrativas independentes, impossíveis de se resumir em uma única resenha, compondo um painel maior que dá coesão à história como um todo. Destaque para alguns personagens que mereciam maior espaço nas tramas multifacetadas do romance, como o pastor Tito que multiplica os dízimos da comunidade de Jacarezinho financiando o tráfico de drogas, a paixão proibida entre os primos Matheus e Laertinho e a manipuladora Magali, viciada em sexo, péssima influência para a vizinha adolescente Nenê que tem os hormônios à flor da pele.
"O dia nascia incerto, mas previsto: era São João, em pleno sábado e com festa noturna. Névoa fria pela manhã e sol aberto durante o dia. Frio intenso. À noite, poderia até gear, com luar e estrelas num céu limpo, sem nuvens, que se destacaria em qualquer parte, menos no coração radioativo da megalópole. São Paulo exilara, há décadas, qualquer vestígio de natureza, incluindo o horizonte e a própria abóboda celeste que, de noite, apenas reflete as luzes da cidade e, de dia, resta coberta de gases, fuligem e poeira em suspensão, como uma semissólida cúpula ocre a reter a energia carregada no solo abafado. Lugar alijado de referências naturais, exceto quando algum desmoronamento ou alagamento vem lembrar que ali também já houve relevo e hidrografia. De resto, hoje há ladeiras onde havia pirambeiras dos morros, avenidas sobre os córregos, marginais para automóveis nas laterais dos rios Tietê e Pinheiros, contidas por concreto. Tudo aprisionado. Todos aprisionados, sem natureza, e com muito poucas referências que a substituam." (p. 19)
Sobre o autor: Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política e emprestou da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, licenciado em Língua Portuguesa pela Uninove. Foi professor, teatrólogo, jornalista, publicitário, assessor político. Sempre militou pela Cultura. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à Literatura e já recebeu dezenas de prêmios, entre eles o Oliveira Silveira de 2015 (Sessenta e Seis Elos), dois de Incentivo à Publicação em 2018 e 2019 (Evoé, 22! e Um Conto de Réis – e de Rainhas, respectivamente), e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 2016 (Xadrez). Publicou também O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica), Retalhos de Sampa (2015 – poesia), ambos pela Editora Giostri, Sessenta e Seis Elos (2016 – romance) pela Fundação Palmares MinC e Xadrez (2019 – romance) pela Editora Patuá.

Comentários

sonia disse…
Minha admiração pelo autor, ao ler sua extensa formação cultural e lucidez quando descreve a coberta impermeável que nos impede de viver numa natureza livre de tanta toxidade!!!
Alexandre Kovacs disse…
Sonia, e como ele bem descreve a ausência da natureza: "São Paulo exilara, há décadas, qualquer vestígio de natureza, incluindo o horizonte e a própria abóboda celeste [...]".

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