Rafaela Tavares Kawasaki - Peixes de aquário
O romance de estreia de Rafaela Tavares Kawasaki surpreende pelo cuidado com a pesquisa histórica sobre o período de isolamento da colônia japonesa no Brasil na década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, e o rompimento das relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, Itália e Japão. Na época, esta decisão provocou um profundo sentimento de xenofobia nacional com a adoção de medidas restritivas contra a circulação de quaisquer documentos e até mesmo reuniões onde se falasse os idiomas dos países do Eixo em lugares públicos, proibição dos jornais e escolas em língua japonesa e até mesmo o uso do rádio nas residências.
Outro aspecto notável na construção do romance é o exercício de polifonia narrativa que agrega diferentes camadas à história da família Fujikawa no interior paulista, formada pelo casal Tatsuo e Kazumi e seus filhos: Kaede, Aiko, Kenji, Chiyo e Yukiko a partir da chegada no Brasil no ano 11 da Era Showa (1936) no navio Santos Maru e a difícil adaptação ao trabalho duro no campo, assim como o desafio de manter a herança cultural japonesa em um ambiente hostil contra os estrangeiros, no qual nem mesmo era permitido falar o próprio idioma em público.
Apesar da condução em terceira pessoa, a autora consegue dar voz própria a cada integrante da família, crianças e adultos, assim como diferentes pontos de vista para cada aspecto da trama, como o luto pela morte precoce da mãe ou a perseguição da sociedade local contra a colônia japonesa, seja a partir dos diários da então adolescente Aiko ou da memória – na verdade, a gradual perda de memória, misturando presente e passado – da mesma Aiko já idosa e das reações da irmã mais velha Kaede que, aos poucos, revelam os motivos da separação até o reencontro, durante o isolamento forçado, em um sobrado, durante a enchente em 1993 quando ocorre um acerto de contas sobre os conflitos do passado com a presença da nova geração, representada pela neta de Aiko, Nina Midori.
"As mãos parecem engrossadas quando ele finalmente sente a pancada do metal da enxada contra a madeira retumbar no topo do próprio crânio. Movimentos acelerados ajudam a revelar a caixa. Aiko pula no buraco antes que terminem de cavar, usa as próprias mãos como se a madeira guardasse um ser em processo de sufocamento. Ela abre a caixa com as mãos sujas, reconhece os objetos pelos dedos. O quimono está abaixo de tudo, dobrado. O tecido é bonito como Kenji lembrava. Ele esfrega as palmas nas partes menos sujas da própria roupa, acaricia a seda, toma as peças das mãos sujas da irmã, separa todas as partes da vestimenta, reconhece o peso. Enquanto Aiko deixa escapar uma palma de comemoração, Kenji abraça ao quimono como a um bebê – com mais ternura do que já havia sentido ao carregar Chiyo ou Yukiko. Apesar da brisa noturna, seu corpo se aquece, como se acalentado por algo que parece alívio e beira a alegria. O sorriso no rosto, reflexo da expressão que faz os dentes de Aiko brilharem no escuro, esmaece quando ele se lembra de que se o quimono em seu colo não animar a mãe ou salvá-la, poderá ser uma roupa de funeral." - trecho da parte um - A mãe - Desenterro, Agosto de 1943 (pp. 32-3)
Além do valor de pesquisa histórica, o romance representa um belo trabalho de literatura ao destacar com muito lirismo a questão da universalidade da condição humana nas relações de amor e ódio entre os personagens do núcleo familiar – independente da sua origem ou época – e também sentimentos de culpa gerados muitas vezes pelo preconceito, infelizmente ainda uma realidade no nosso tempo. Outra característica interessante é a marca da linguagem japonesa no texto e a associação com diferentes escolas literárias ocidentais e orientais, utilizando referências tão variadas quanto Wiliam Faulkner (O Som e a Fúria) e Junichiro Tanizaki (As irmãs Makioka), um exercício ambicioso que a autora conseguiu executar com sensibilidade.
"A história que as ranhuras da parede contam se forma em um idioma incompreensível. Sobre elas há quadros com rostos, corpos, roupas, paisagens. As imagens se alternam entre as coloridas e aquelas reveladas sob a ausência de cor. Uma senhora e um rapaz se abraçam na frente de uma ponte. Têm sorrisos sem significado conhecido para Aiko. Os dois são figuras recorrentes entre molduras. Juntos. Sozinhos. Com outros rostos sem nome. No meio de um desfile, se destaca um corpo feminino coberto por ramalhetes e luzes. A mesma senhora, já envelhecida, e o mesmo rapaz da outra foto surgem pequenos em comparação com um templo dourado. Estão no Japão. Aiko queria revisitar o país onde nasceu. Nunca pôde. Em outra foto, os dois posam em frente a um bolo com uma mulher de traços ocidentais e cabelos cacheados, mais jovem que a senhora e mais velha que o rapaz. O trio parece alegre em uma celebração da própria intimidade. Por que Aiko olha os porta-retratos? Aquela história é dos outros, dos que partiram, daqueles que decidiram não mais estar com ela. A própria memória é que ela precisa preservar, marcada em traçados da menina que foi, pistas sobre a mulher que é." - trecho da parte dois - Os traçados - Nome, Novembro de 1993 (p.74)
Alguns capítulos são muito fortes, como a passagem que descreve a morte da porca durante o parto: "Kaede suja o rosto ao esfregar as mãos na pele. O suor dela se dilui com o sangue da porca. Os soluços de Kaede se fundem aos gritos do animal. São uma só", a chegada de Tatsuo Fujikawa em casa após o interrogatório na polícia: "A casa vazia parecia a carcaça de um animal morto. Imóvel, côncava, oca. A cozinha abandonada até cheirava a putrefação. Pestilência de frutas, gordura, manteiga, feijão, carne esquentados pelo sol. Esse país é tão quente que apressa a ação da morte." ou a inesquecível cena que descreve a descoberta do amor por Kaede e Leonor, destacada abaixo. Uma obra muito recomendada, para se ler e reler.
"Kaede sorri. Ela ouve o próprio riso. Leonor furta uma jabuticaba de suas mãos. Kaede não reage. No dedo de Leonor, a jabuticaba é tão cheia que parece feita de pedra, não de maciez. ela a encosta os próprios lábios, então, estende a mão e a oferece na soleira da boca de Kaede. A fruta é abocanhada com as pontas dos dedos de Leonor. São macias, sim, as duas. Kaede sente a carne salgada próxima aos dentes. Está úmida. / Sem pensar, Kaede a imita. E as duas seguem alimentando a boca uma da outra. O que está acontecendo? Kaede não consegue parar. A jabuticaba que Leonor oferece a ela é a maior entre o punhado em suas mãos. Kaede a deixa deslizar entre a língua, sente o estouro úmido. A suculência adocicada escorre até a garganta, escapa um pouco nos lábios que Leonor começa a acariciar. Suja os dedos. Kaede os lambe sôfrega. Não quer perder nada daquela jabuticaba. / Mal ela engole até a casca, Leonor a beija enquanto solta o resto das jabuticabas. Kaede as sente rolarem pelas pernas. A nuca de Leonor está quente como tudo que é tocado pelo sol." - Trecho da parte três - O fogo - Jabuticabas, Setembro de 1944 (p. 152)
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