Afonso Cruz - Princípio de Karenina

Literatura portuguesa contemporânea
Afonso Cruz - Princípio de Karenina - Editora Companhia das Letras - 200 Páginas - Capa: Claudia Espínola de Carvalho, Fotos de capa e miolo de Afonso Cruz - Lançamento: 2021.

A famosa abertura de Anna Kariênina, de Tolstói, "Todas as famílias felizes se parecem; todas as infelizes são infelizes à sua maneira", é recriada pelo português Afonso Cruz em seu próprio romance: "Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo. Esta história, minha e da tua mãe, é também a tua."; aqui a frase funciona também como o início de uma longa carta de um pai para a filha que não conheceu. Este pai será o narrador-protagonista contando-nos a história de sua vida desde a infância com a ajuda de citações que variam de Tolstói até Guimarães Rosa: "Infelicidade é questão de prefixo. [...] e que viver é um rasgar-se e remendar-se", uma obra original e sensível, boa oportunidade para conhecer um pouco mais da literatura contemporânea portuguesa.

Aos oito anos, o nosso protagonista, que tem uma deficiência congênita em um dos pés, se torna também "coxo da cabeça" ao aprender com o pai a temer "tudo a que ele chamava de estrangeiro e que não se limitava a uma fronteira geográfica, mas sobretudo moral: – Ouça, menino: se alguns lugares são geograficamente acessíveis, são, no entanto, moral e psicologicamente aberrantes. Um homem de bem não deve sair do seu espaço, deve deixar a selva para os selvagens." Mais tarde, ele entenderia que a aversão paterna ao estrangeiro, significava apenas medo. Onde começava essa definição de estrangeiro? Segundo o pai, "o estrangeiro começava logo a seguir à porta de casa, e esse exterior estendia-se até a Conchinchina [...], o longe mais longe possível, mais longe do que a distância, o momento e o espaço em que a desordem se impõe de uma forma tal que nada faz sentido."

"Como poderia eu, rapaz relativamente deformado, sonhar um dia casar-me com a Fernanda da farmácia, quando o meu rival era o ápice do cânone grego, uma pessoa meio dicionário mitológico, meio recordista dos cento e dez metros barreiras? Mas, na verdade, o segredo é incorpóreo, não se vê. A realidade pode ser muito dura, mas os sonhos dão boas almofadas. O mundo pode ser de pedra, mas os sonhos são um colchão por cima dele e têm a teimosia e a ousadia de não desistir. Por mais que os afastemos, enxotemos como fazemos às moscas incômodas, os sonhos voltam sempre a assombrar-nos, a pousar-nos na cabeça, a picar-nos. Não é a dureza do mundo que vence, são estes insetos frágeis, sem ossos, sem corpo, a que chamamos sonhos, que acabam por fazer buracos no mundo, por o penetrar e vencer." (p. 64)

Após o casamento com a Fernanda da farmácia e a morte do pai, a vida segue a rotina que "é a coluna vertebral da moralidade", até que esta muralha interior é destruída pela chegada da substituta da velhíssima criada da Mealhada, justamente uma refugiada do Vietnã no início da década de 70, uma mulher que inspira a seguinte anotação no seu caderno de contabilidade: "Quando olho para ela, vejo uma janela aberta." Logo, o limitado e infeliz universo doméstico é invadido por ingredientes exóticos, sendo a culinária apenas uma representação de tudo o que mudava: "A partir desse instante, a solidez da minha rotina começou a abrir uma brecha por onde entrava luz. A presença dela haveria de perturbar o tédio nosso de cada dia, abrindo uma janela por onde quer que passasse."

"As noites entre mim e a minha mulher poderiam ter sido momentos de fulgor e calor entre duas pessoas recém-casadas, mas o ambiente era de escritório. Ela era, como já disse, indecisa, e isso paga-se caro na cama quando tudo deve ser fluido, sem hesitações. E eu, pelo meu lado, estava ali como quem carimba um formulário, zeloso do dever da mutiplicação, sem manifestações que pudessem abalar a sobriedade cristã, para a frente, para trás, para a frente, para trás, ela de olhos colados no teto, eu de olhos colados na cabeceira da cama de carvalho, controlando a respiração e concluindo, com uma espécie de suspiro longo, que, se resultasse em descendência, haveria de justificar aquela cena ridícula, que á a cópula executada como nós a executávamos." (p. 93)

É claro que toda essa magia tem prazo certo para acabar. É o que acontece quando uma gravidez inesperada faz com que a criada retorne para sua terra natal. Conseguirá o nosso protagonista, educado com base na solidez da rotina, ter a coragem suficiente para reconhecer que "não existe felicidade na igualdade e na monotonia" e que "é impossível ser feliz sem dor"? Talvez a lição mais importante neste romance seja a certeza da necessidade de desequilíbrio para provocar o movimento, Afinal, "Sem desequilíbrio, nada se move. Um círculo está em constante desequilíbrio. É bom para fazer andar os carros. Os quadrados não têm essa possibilidade. Já estão bem assim, sentados à lareira, a sublinhar a sua hombridade, a sua estrutura sólida. Não são felizes, são produtos industriais saídos de uma máquina de fazer quadrados." E você caro leitor, sua vida está mais para círculo ou quadrado? 

"Cochinchina era para o meu pai o lugar para lá do lugar. Uma pessoa podia pecar, mas a Cochinchina era o metapecado, a fera suprema, o ponto onde a razão enlouquece, estava para lá de Deus. Uma pessoa podia imaginar a extensão do mundo, mas a Cochinchina era um passo além da nossa imaginação. Como nunca tinha sentido uma paixão verdadeira, ainda não sabia que a mesma definição se poderia aplicar ao amor: fera suprema, enlouquecimento da razão, ponto para lá de Deus ou da imaginação. / Não conseguia dormir. Senti que tinha voltado a ter oito anos e que me havia confrontado com a existência de uma região mitológica, uma barbárie onde viviam pessoas, algumas delas bastante luminosas, com caras de janelas abertas, com quem era possível falar e, quem sabe, amar. [...]" (p. 104)

Sobre o autor: Afonso Cruz é escritor, ilustrador, cineasta e músico português. Estudou na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Artes Plásticas de Madeira. Foi vencedor do Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco de 2010 com Enciclopédia da Estória Universal e em 2012 do Prêmio da União Europeia de Literatura com A boneca de Kokoschka, entre outros. No Brasil, a Editora Companhia das Letras publicou Jesus Cristo bebia cerveja (2014) e Flores (2016).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Princípio de Karenina de Afonso Cruz

Comentários

sonia disse…
Desconfio que todo mundo passa por isso num certo período da vida. Os mais corajosos, pulam para o abismo. Às vezes criam asas durante o vôo e descobrem um mundo maravilhoso!!!
Alexandre Kovacs disse…
A verdadeira literatura sabe expressar muito bem essa condição humana. Obrigado pelo comentário Sonia.

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos

As 20 obras mais importantes da literatura italiana

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira